Por Theia Produtores Associados em 28/nov/2019
Maria de Fátima da Silva do É nasceu em Santarém, município de Casa Nova (BA) às margens do São Francisco, e, aos 61 anos, é artisticamente conhecida como Raoni pelas ruas de Juazeiro (BA) e de Petrolina (PE). Há pouco mais de dois anos, ela iniciou sua atividade como compositora e cantora de lambadão nas áreas de comércio popular e nas proximidades dos bares e restaurantes da orla do grande rio. Integrando tais cenários, nossa personagem demonstra que ser artista nos espaços populares significa pensar em todos os detalhes de sua música e de sua performance, incluindo seu figurino. Blusa branca com modelagem que se ajusta ao pescoço, ombros à mostra e pequeno decote nas costas, saia igualmente branca com três camadas acima dos joelhos, lenço com miçangas amarrado na cintura, meia arrastão branca, sapatilhas vermelhas, óculos de sol com pedras brancas na armação, brincos com argolas douradas. Nos cabelos, grande arranjo preso em um coque com a mesma tonalidade da coloração dos fios. Encontramos, enfim, Raoni, em frente ao Paço Municipal de Juazeiro, a caminho da “multidão”!
O prazer em cantar surgiu no seu universo particular de mãe, principalmente, quando brincava de se apresentar para seu filho mais novo chamado Raoni (com a pronúncia da tônica no “i”). Perto de completar quinze anos de idade, seu filho sofreu um acidente e iniciou sua “viagem” como ela prefere contar. Dessa forma, seu nome artístico é uma homenagem e uma forma de se sentir sempre perto do filho que partiu tão cedo. A descoberta da possibilidade de ser uma artista esbarrou em outro aspecto de sua história de vida: o ciúme do marido. Por anos, Raoni evitou se profissionalizar como cantora para evitar desgastes em seu casamento e ter que retornar à casa materna com uma mala nas mãos.
Do campo afetivo para a adequação da prática profissional nas ruas, a cantora relaciona dois acontecimentos familiares: “Depois que ele [seu filho] viajou para a outra vida. Os dias foram passando, meu marido adoeceu, aí, demorou um bom tempo ele doente. Aí, quando foi agora, está dentro de dois anos, eu senti vontade de cantar”. Tal decisão veio ao lado da observância de suas reais possibilidades, como ela continua a relatar: “Porque eu não tinha dinheiro. E eu olhei pra mim, a minha idade, eu digo ‘não’. A única coisa que veio no meu pensamento: que eu saísse no meio da rua para que as pessoas me vissem o mais rápido possível pra que me considerassem cantora. Porque eu vim para cantar e vim para ser modelo também, duas coisas”. Ou seja, a real percepção de que a profissionalização está atrelada ao acesso a investimentos em pessoas e estrutura técnica fez Raoni criar, não apenas as letras e melodias de suas músicas, mas, sobretudo, sua própria forma de divulgação popular e seu processo de reconhecimento público como artista que, além de receber colaborações espontâneas, vende seus próprios CDs.
A ação independente no entra e sai de ruas e esquinas é configurada com elementos que chamam a atenção até dos transeuntes mais apressados. Junto ao figurino e à performance, Raoni agrega uma caixa de som portátil, com entrada USB e conectada a um microfone, que ela carrega com desenvoltura enquanto canta e dança interagindo diretamente com os passantes. Do aparelho, sai a gravação da sua voz com bases eletrônicas em cima das quais Raoni canta, anuncia seu próprio nome e faz propaganda de seus produtos pelo citado microfone. Nossa cantora sabe se fazer notar e enseja uma persona totalmente condizente com as ruas de consumo popular que percorre. Sua expressividade e seu trabalho corporal despertam sorrisos, acenos, gargalhadas, gritos. É impossível ser indiferente. A via pública se transforma em uma passarela que ela domina, iluminada pelo potente sol do Sertão.
Ao longo da intensa caminhada (o ritmo do andar de Raoni é surpreendente), nossa artista é um mulher na casa dos 60 anos que, de forma evidente, cuida de seu corpo, de sua resistência física e que combina uma comunicação lúdica com a sensualidade de sua dança junto à interpretação das letras de duplo sentido. Exatamente ao abordar sua forma de composição, a cantora conecta a arte das ruas à sua ligação com o rio que banha a região: “A letra da música do rio São Francisco é porque eu conheci muito o rio de quando eu comecei a crescer o meu entender. Na época, existiam os vapores do rio São Francisco, eu viajei muito de vapor. Então, eu falo muito do rio porque eu tenho muito a ver com o Rio São Francisco. E gravei, veio a letra da música da Piranha que mora dentro do rio. A piranha que mora dentro do rio é o peixe mais perigoso que mora dentro do rio. O que a piranha faz dentro do rio? ‘Ela só quer comer, hum hum, ela só quer morder. Essa piranha é boa’ [cantando]. É uma delícia. A piranha é boa, gostosa demais”.
Tudo em Raoni é uma “assinatura”: sua música, seu figurino, sua corporeidade performática, suas frases de efeito como “delícia, Raoni!”, “ela é demais!”. Nesse contexto, como não olhar uma vitrine diante da qual ela se apresenta? Com essa motivação, lojistas a ajudam e fazem acordos para que se apresente por alguns segundos nas portas de suas lojas. Podemos perceber essa relação de parceria e de marketing na fala da vendedora Maria Lúcia da Silva: “Raoni é uma figura, né? Uma cantora muito boa e o pessoal aqui da rua gosta muito dela. Agora, há pouco tempo, assaltaram ela e alguns comerciantes ajudaram ela. Inclusive, o dono aqui da loja ajudou ela, também, a comprar o som dela”. A conotação de receptividade e amizade também transparece na fala de Geane da Silva Dias, gerente de uma ótica: “Rapaz, falar de Raoni é falar de um estouro em Juazeiro. Todo mundo é louco por Raoni. Onde Raoni passa, ela arrasta multidões, com certeza, e ela é top (sic). Carnaval…toda festa tem que ter Raoni”.
De ponto em ponto comercial, nossa câmera gira acompanhando os movimentos da artista. As conexões entre propaganda popular e música para as massas se concretizam. Um de seus lambadões exige, por exemplo, uma coreografia específica para o trecho “Essa cabrita só quer comer, só quer comer, só quer comer (…) e tome macaxeira, tome macaxeira…tome, tome, tome, tome…ela é demais”. Nessa circunstância, abre-se a oportunidade para que o público decore a letra da música e reproduza, também, sua dança, como uma marca.
Por falar em marca, o trabalho vocal de Raoni apresenta uma especificidade que ela explica de forma curiosa: “Quando foi um dia, eu estava na cama e uma vozinha no meu ouvido ‘cante, cante’. Eu digo ‘eu não sei cantar, não sei cantar’. Mas continua essa voz no meu ouvido. Aí, um dia, eu me levantei, eu digo ‘tá bom, eu vou cantar’. Fui para o muro e comecei a conversar com Deus, (…), falando o que tava (sic) acontecendo. Como eu ia cantar? Eu não tinha sanfona, não tinha violão, não tinha guitarra, não tinha piano, nada! Aí, os dias foram passando, eu senti vontade de mexer aqui [aponta para a garganta e cordas vocais]”. Assim ela começa a demonstrar o que chama de “Toque”. Um ruído sonoro ritmado e agudo começa a sair da sua garganta e que lembra, de forma excêntrica, uma guitarra de lambadão eletrônico. Ela faz os gestos de quem toca o instrumento e começa a intercalar o canto da letra com o “toque” anasalado: “Essa piranha é muito boa, ela é muito gostosa. (…). Ela só quer comer, ela só quer morder”, e faz a base final com o “toque”. Assim, Raoni descobriu há alguns anos sua forma de composição.
Este é um desenvolvimento de criação que, dentro da lógica de formação do músico popular, associa dois tipos de escuta: a atenta e a intencional. Podemos compreender que, na ausência de instrumentos musicais e de quem os execute e ensine, Raoni passa a imitar vocalmente a sonoridade que buscava. A produção de variações melódicas passa para uma ação intencional em que a cantora se baseia em seu próprio conhecimento sobre o gênero musical que almeja desempenhar. Esta criação de si na ambiência artística das ruas se dá junto à consciência de que é preciso se destacar e vencer todos os apelos sonoros e visuais que a rodeiam.
O que consideramos, aqui, é toda a ação artística que precisa ser inventada e implementada nos espaços públicos de vivência diante de uma participação coletiva que, muitas vezes, não supõe a compreensão da natureza profissional que se dá nas apresentações. Sobre o reconhecimento, ou sua ausência, tanto pelos cidadãos quanto por políticas de cultura, conversamos brevemente com Josinaldo Cícero da Superintendência de Eventos da Secretaria de Cultura de Juazeiro. Perguntado, primeiramente, sobre o que pensa acerca dos músicos que se apresentam nas ruas, Josinaldo afirma que considera essa prática “Legal. Assim…anima as praças, anima a rua, anima o povo da cidade e Raoni tem esse exemplo (sic) que já foi na TV, foi chamada, está conhecida na cidade. (…). Muito divertido e, também, um artista (sic) lúdico, cheio (sic) de alegria, que traz o riso das pessoas, também, além da musicalidade que ela propõe às pessoas na rua que passam por ela”. Nota-se que a arte de Raoni é observada, até mesmo por representantes da Secretaria de Cultura do município, como uma ação de puro entretenimento ou distração diante do cotidiano, como se não engendrasse uma série de conexões entre os campos da indústria fonográfica e da criação independente ou como se a referida ação estivesse envolta em uma proposta inocente, digamos assim, da arte.
Diretamente questionado sobre se há a possibilidade de uma política municipal de apoio aos músicos e outros artistas dos espaços populares, Josinaldo Cícero afirma que “Ainda não, mas eu acho importante incluir o trabalho deles e reconhecer o trabalho que eles fazem para a cidade. Não só a questão da música, mas ter um respeito com as pessoas que ficam nos semáforos jogando malabares, cuspindo fogo e o pessoal que vem abrilhantar. Na verdade, assim, é uma arte de graça para as pessoas, né? Além das pessoas que contribuem, as pessoas que não contribuem, nas ruas, aproveitam também do show que eles fazem (…). Então, assim, é importante a gente reconhecer e dar o espaço para eles ficarem à vontade para se apresentar”.
Os encontros entre músico/cantor com as pessoas se dá nessa abertura interacional que, a priori, não encontra barreiras físicas ou simbólicas e os sentidos de reconhecimento e valorização da arte passam, muitas vezes, por trocas afetivas e diálogos. Quando perguntada sobre a importância que as ruas têm para sua vida e seu trabalho, Raoni nos dá uma explicação bem particular: “Desde quando eu comecei a fazer, eu achei muito gostoso. Porque você vai encontrar muitas pessoas tristes e, na hora, em que eu entro, que eu vejo uma multidão de gente, eu me preparo, boto o meu som baixo, Deus me prepara em tudo, e eu saio passando no meio do povo, cantando como nada está acontecendo (sic). Então, muita gente me puxa e me diz ‘olhe, você me salvou’. (…). Aí, nós nos abraçamos. A gente se abraça e pronto”. Dessa forma, Raoni assume e demonstra um objetivo comunitário para o seu canto, sua performance, suas músicas e continua: “Então, eu fico feliz, muito feliz. Não me arrependo do que eu fiz, faria tudo de novo porque eu estou lavando o coração da multidão com muita alegria, muita alegria e muita alegria. Eu não estou arrependida e nunca vou me arrepender, faria tudo de novo”.
Na complementaridade entre sua história de vida e sua recente trajetória, Raoni faz mais do que entreter e provocar sensações de “alegria”. Raoni desestabiliza as comuns barreiras para a iniciação artística de uma mulher sertaneja e de idade mais avançada do que é considerado normal para a particular expressão que ela exerce. Sua resistência pessoal, diante dos limites impostos pelo seu casamento e o entendimento tradicional do papel das mulheres, expande-se em um tipo de noção do espetáculo para as ruas, enfrentando o ainda inconsistente apoio social, mas recriando nossas percepções sobre o encontro do artista com suas multidões.