Petterson – autonomia artesanal
O trabalho do artesão é a mola mestra da única vida que ele conhece; ele não foge do trabalho numa esfera separada de lazer; leva para suas horas de ócio os valores e qualidades desenvolvidos e empregados em suas horas de trabalho (MILLS, 2009, p. 62).
No texto “O ideal do artesanato” (2009), o sociólogo Charles Wright Mills faz uma reflexão sobre a representação social do trabalho do Artesão: um tipo ideal, ou modelo, de criador e produtor que passou a ser considerado anacrônico a partir da lógica industrial de produtividade, sobretudo, nos grandes centros urbanos. No entanto, o que a mecânica do ofício artesanal tem a nos ensinar sobre as possibilidades de relacionar trabalho com liberdade e autonomia?
Essa é uma questão que pode ser estendida ao universo dos músicos nas ruas e demais espaços populares. Como mencionamos no primeiro texto publicado em nosso site, os artistas nas ruas pensam e efetuam a totalidade da exposição pública de suas obras, reinventando cenários e ativando o tempo da experimentação estética em lugares que acumulam múltiplos usos e reverberações. Nesse sentido, os músicos nas ruas, por exemplo, têm muito o que acrescentar às nossas concepções de autonomia artística, observando-se, no caso, suas estratégias profissionais que entrecruzam as situações musicais com as possíveis formas de viver.
https://youtu.be/HFMrKqUh5FM
O diálogo que tivemos com Petterson Sousa Nóbrega, no dia 23 de Outubro de 2019, quando o encontramos no centro de Petrolina (PE), inspirou-nos a elaborar essas questões sobre arte e vida. Ajudou-nos, também, a entender melhor uma interessante relação entre diferentes práticas artísticas que invadem as ruas e que podem ser complementares, entre si, a partir de iniciativas que buscam por soluções para a sobrevivência e para a ampliação do olhar sobre realidades cotidianas.
No caso específico de Petterson, levar música às ruas foi uma ação que se uniu à venda de produtos/objetos artesanais. Em plena Praça do Bambuzinho, o músico se apresenta tocando violão e cantando ao lado de um amigo que toca um reco-reco como acompanhamento percussivo. Junto à dupla que se formou naquele mesmo instante, as peças artesanais são expostas em um tapete, aberto no chão, onde são dispostas bolsas de couro, pulseiras, anéis, colares e brincos. Algumas peças estão organizadas em mostruários como se estivessem em uma vitrine, bem à vista do comprador. Sentados em um banco, abaixo da sombra produzida pelas copas das árvores, os músicos artesãos se acomodam e se preparam para passar muitas horas em que vão relacionar arte e trabalho com diálogos, amizades e cooperações, pois não são os únicos ali a lutarem para conseguirem renda com as vendas nas ruas.
Assim que iniciamos o registro audiovisual, Petterson escolheu executar a música “Tubi Tupy” dos compositores Lenine e Carlos Rennó. A voz, o violão e a parceria percussiva precisam sobrepor, sem microfones e caixas amplificadoras, muitas interferências sonoras completamente urbanas. A mencionada Praça do Bambuzinho divide, em duas faixas, uma avenida comercial movimentada na cidade; ou seja, motores, buzinas e anúncios em carros de som “passam por cima” e impõem uma dinâmica específica para a performance artística e, nela, é preciso ter habilidade para participar desse jogo de forças. Diante da intensa cacofonia do entorno, o artista precisa interromper o canto, mas dando continuidade à melodia no violão, para, em seguida, retomar a letra da canção do ponto em que havia parado. Assim, em meio ao conturbado cenário, fazer-se ouvir e chamar atenção das pessoas são desafios que se impõem na mesma proporção em que a forma de ser e de viver do músico artesão é opositora ao fluxo veloz dos nossos modelos de cidade.
Aos poucos, vamos percebendo que Petterson escolhe seu repertório tendo por base músicas de autoria de pernambucanos amplamente reconhecidos. Após tocar “Jack Soul Brasileiro”, também de Lenine, dá sequência com “Manguetown” de Chico Science, Lúcio Maia e Dengue. Seu parceiro musical, no reco-reco, vai desenvolvendo uma variação da forma percussiva sinalizando que a dupla improvisa ritmicamente para poder, principalmente, adaptar o violão e a voz à circunstância sem equipamentos e posta em prática com muita simplicidade. Para os transeuntes, conhecer o que os dois artistas querem propagar exige aproximação e conexão com essas referências oriundas de um contexto da música pernambucana que ganhou reconhecimento nacional a partir dos anos 1990.
Esta opção por referendar uma produção local se torna coerente com a narrativa de Petterson sobre a sua iniciação musical. Ainda adolescente, em Petrolina, o seu interesse pela música começou quando ele passou a frequentar o “movimento Rock’n Roll” da cidade:
“Eu vi umas bandas que tocavam aqui na cena, na época eu tinha uns 13/14 anos. Tinha o Goca, o Apocalipse Reggae, (...). Eu comecei com a galera fazendo o som e me interessei. Com isso, eu arrumei um violão, comprei uma guitarra (...). Aí, eu fui começando nesse meio alternativo, fazendo música e compondo. Eu comecei a compor algumas músicas com uns amigos meus também, comecei a inventar alguma coisa”.
Podemos entender, dessa forma, que a vivência de uma cena local espontânea, com amigos, impulsionou o aprendizado musical e, ao mesmo tempo, a valorização de segmentos do Rock e do Pop em Pernambuco. Dados biográficos como estes chamam atenção por conta da constante busca por exercer atividades artísticas atendendo a uma necessidade pessoal, interna; notando-se as mudanças de suas práticas particulares com o passar dos anos.
Após formar uma banda chamada “Andantes”, na qual tocou por oito anos, Petterson foi atrelando a música ao artesanato em manifestações nos espaços populares. Diante do senso comum que monetiza as horas de trabalho, o artista realiza, para si, o que Wright Mills (2009) define como associação entre trabalho e diversão ou trabalho e cultura na lógica artesã de criação. O artesanato pode ser visto, portanto, como um modelo de satisfação no ofício pois, nele, não há motivações que se sobreponham ao prazer do processo de criação, onde o artesão é livre para reinventar os seus modos de fazer.
A satisfação que o resultado lhe proporciona inspira os meios de alcança-lo, e desse modo seu trabalho não é apenas significativo para ele, mas participa da satisfação que ele tem no produto e que o completa (MILLS, 2009, p. 60).
A partir desses significados da ação individual em um meio coletivo, podemos observar que o músico das ruas percebe seu próprio trabalho ao mesmo tempo em que percebe as realidades econômicas e comportamentais ao redor. Seu ofício está atrelado ao mundo da vida por onde quer que ele passe. Esse ponto de vista ganha, também, uma certa funcionalidade no dia-dia de Petterson. No desenrolar da entrevista, ele nos conta que as peças artesanais ganharam importância ao lado da música por dois motivos: para que sua renda aumentasse com os ganhos das vendas e, em contrapartida, para que sua atividade musical, nas ruas, ajudasse o artesanato a ser melhor compreendido, sofrendo menos intimidação por parte dos cidadãos e dos agentes fiscalizadores das atividades nos espaços públicos. Ou seja, música e artesanato andam juntos para tentar driblar classificações discriminatórias como “vagabundagem” ou “loucura” por exemplo.
Essa escolha estratégica para ir às ruas nos faz entender que os usos mais comuns dos espaços populares podem determinar, por exemplo, sensações de maior ou menor receptividade das pessoas, de um modo geral, e estas impressões são expostas por Petterson na medida em que narra suas viagens para exercer seu entrelaçamento entre vida – arte – subsistência:
“Como aqui não tinha muito essa abertura para esse negócio de músico de rua, pelo menos eu não via isso, (...), eu saía com o violão e o artesanato (...), na verdade, a música ficava como uma segunda alternativa; se eu não vendesse o artesanato, eu parava na rua, botava o chapeuzinho no chão e começava a tocar. Isso de início. Quando eu fui rodando pelo Brasil, eu percebi que aqui, pelo menos na parte do Nordeste e começando o Sudeste, o pessoal não dava muito valor. Você, às vezes, passava o dia tocando na rua e não conseguia arrumar uma grana. Só que isso começou a mudar quando eu cheguei no Sudeste e fui mais para as fronteiras do Brasil. Eu percebi que a galera que faz música na ‘Sul America’, essa parte da Cordilheira dos Andes, tem mais essa cultura do que aqui no Brasil”.
A partir dessa informação, nosso entrevistado nos revela suas comparações entre as receptividades em cidades brasileiras e cidades na América do Sul pelas quais ele viajou e aprofundou sua artesania artística na esfera coletiva com variadas interações. “Nesse momento que eu cheguei no Sudeste, eu comecei a perceber que eu tocava mas não tinha tanta aceitação do pessoal na rua. Eu conheci várias pessoas que estavam vindo do Peru e do Equador na mesma rota”.
Este contato com músicos em outras regiões levou Petterson a mirar trilhas em países que fazem fronteiras com o Brasil e onde ele não teria muitas dificuldades para entrar e circular: “E eu decidi ir pegando a fronteira da Bolívia, chegando até o Acre, depois entrei no Peru. Quando eu entrei pro Peru, eu decidi ficar. Na primeira cidade que eu fui, encontrei um menino, um pandeirista, e ele ‘ei, vamos fazer um som?’. Ali já me instigou a continuar fazendo, né?”. Em suas andanças, Petterson chegou até Cuzco onde passou um tempo tocando nas ruas, bares e onde mais fosse convidado, em apresentações solo ou com parcerias. Lá obteve um interessante retorno financeiro e pôde viver um tempo com sua companheira e o filho recém-nascido.
Indo além dos ganhos monetários, Petterson aponta o reconhecimento do público espontâneo como a principal diferença entre tocar nas ruas de cidades brasileiras e tocar em cidades no Peru, na Bolívia, no Equador ou no Chile: “o pessoal lhe vê na rua e vê um artista. Aqui no Brasil, eu sou sincero em lhe dizer,[o pessoal] vê você na rua e já diz que é um ‘doido’. Eu não estou dizendo que é geral, mas uma boa parte. [Diz que] é um desocupado, um vagabundo, entendeu?”. Essa é uma interpretação, atribuída à população e aos órgãos públicos de fiscalização e repressão, que faz o artista sentir falta de vivenciar diálogos que valorizem seu trabalho.
Muitas vezes, a aproximação das pessoas se dá com a motivação de oferecer ajuda para que o artista saia das ruas e busque outra forma de sustento e sobrevivência. Enfrentando tais pré-julgamentos, Petterson apresenta forte posicionamento de valorização das práticas artísticas nos espaços públicos: “Aqui, no Brasil, tem que abrir mais esse espaço, a gente reconhecer que a rua é nosso lugar de expressão mesmo, de mostrar o que a gente é, e não ficar só dependendo desse sistema que só escraviza. Quer botar você numa fôrma e dizer ‘você só é aceito músico se tiver uma obra gravada em tal estúdio; se você tiver tantos seguidores nas redes sociais’, né? O músico de rua se liberta disso, ele diz ‘o meu prazer é fazer música’ e, claro, obviamente viver disso; porque ficar só tocando sem ter retorno é complicado, a gente tem que comer”.
Da mesma forma, sua fala é contundente ao mencionar a repressão institucional pública nas ruas brasileiras que, à luz do dia, acontece por meio dos ficais “vestidos de azul” que costumam questionar sobre “alvará de licença, permissão”. Afirma, também, que as abordagens não são um fenômeno recente, ocorrem há anos, e que não acredita que o contexto atual, principalmente o político, vá ajudar a dar maior liberdade expressiva nas ruas. Tal perspectiva nos leva a refletir sobre a condição diária de buscar “viver da música”, expressão usual quando nos referimos à profissionalização e gestão financeira da arte. Sobre isso, Petterson argumenta que a condição do músico de rua, no Brasil, desenvolve-se de forma muito lenta; é preciso encontrar os “picos” certos onde “a grana flui mais fácil”. Na condição de estrangeiro, entre os vizinhos latino americanos, percebeu que tinha bom reconhecimento e atraía oportunidades por ser brasileiro e acredita que, da mesma forma, artistas de outros países são melhor valorizados por nós em qualquer dimensão de apresentação. Contudo, sobre as dinâmicas das ruas de grandes cidades brasileiras, considera que ter boa estrutura e bons equipamentos sempre favorece o artista; seja dando uma roupagem profissional aos olhos dos transeuntes, seja facilitando as liberações com prefeituras e outras instâncias reguladoras.
Em sua autoconstrução artística, Petterson está há mais de dois anos fixado, novamente, em Petrolina e decidiu entrar para o curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Essa guinada em sua formação se deu, como nos revelou, pela presença da pintura em sua vida particular e pela já mencionada importância do artesanato em sua sociabilidade e sua renda a partir dos espaços populares. Por isso, seu caminho acadêmico tem sido, também, uma militância para o reconhecimento do artesanato entre seus pares dentro do campo artístico:
“Eu estou há dois anos nesse ramo das artes visuais fazendo muito desenho, muito graffiti e fazendo pesquisa envolvendo o artesanato. Colocando o artesanato na academia como patamar de Arte; porque existe uma diferença. O pessoal acha que artesão de rua não é artista. Então, eu estou fazendo umas pesquisas em cima disso e a música é aquela coisa que nunca sai, né? (...). O mundo da música sempre está entrelaçado; mas, há dois anos, praticamente, eu estou me envolvendo mais com as artes visuais e com essa ambição de dar força ao artesanato. (...). Ser reconhecido no Campo da Arte: a Arte Visual, a Arte Conceitual que entra dentro da galeria”.
A problematização dos lugares de exibição da arte e suas lógicas de inserção e de exclusão permeia, muitas vezes, nossa percepção sobre a cotidiana composição dos espaços públicos como territórios para a partilha estética. Podemos, por exemplo, questionar: como a rua pode continuar a ser um meio para a arte diante das instituições especializadas em usufrutos, discursos e financiamentos para o Campo Artístico? Petterson, em sua iniciativa, mostra-nos um dos caminhos possíveis no Vale do São Francisco: lembrar ao campo acadêmico da arte o quanto as ruas podem movimentar processos híbridos de criação; ou seja, que transitam dentro e, ao mesmo tempo, fora das galerias e dos museus. Esta é uma estratégia de autorreconhecimento que se estende ao universo da música no Brasil que, em seus diversos contextos, teve e tem sua musicalidade oriunda das ruas, como já foi levantado historicamente por José Ramos Tinhorão em “Os sons que vêm da Rua” (2013).
Contudo, entre legitimações, mercados e a profissionalização, Petterson destaca em si, e nos demais músicos das ruas, o potencial de fazer a arte pertencer àqueles que querem, simplesmente, produzi-la; àqueles que não precisam que instâncias superiores permitam que se faça arte ou não. Tal postura fica evidente quando perguntamos a ele o que é ser um músico nas ruas, ao que Petterson responde:
“Músico de rua, pra mim, é um ser autônomo. É o autônomo que a instituição quer formar. A Universidade diz que forma autônomos, mas, para mim, o autônomo é aquele cara que vive da sua própria correria, vive do seu dia-dia, faz porque gosta. (...). Eu faço assim: ‘quem gostar, gostou’. (...). Não tem aquela cobrança de como você deve se portar, deve se vestir. (...). Eu vejo que o pessoal se preocupa muito com o estereótipo; e o músico da rua, não”.
Por isso, podemos concluir que, em sua “correria”, trajetória ou cotidiano, Petterson Nóbrega segue modelando os detalhes do seu universo criativo na sua mente e nas suas relações; ao lado de amigos e cenários urbanos que são matéria prima para a artesania conceitual e prática da sua autonomia artística.
Boas Leituras
GARSON, Marcelo; SOUZA, Lucas. “Música popular e sociedade”. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF, v. 13, n. 2, Dezembro de 2018.
MILLS, C. Wright. “O ideal do artesanato”. In: Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
TINHORÃO, José R. “Os sons que vêm da rua”. São Paulo: Editora 34, 3ª edição, 2013.