Damião Santos – Arrocha no Velho Chico


Por Theia Produtores Associados em 07/abr/2020

Nossa equipe de pesquisa e produção retorna à margem do Rio São Francisco. A dimensão do cenário nos faz sentir novamente a influência do vento e das águas na forma de percorrer duas cidades unidas por tantos fluxos e movimentos. Estávamos, assim, aguardando nosso próximo entrevistado. Nascido em Cabrobó (PE), Damião dos Santos Cariri se mudou, ainda jovem, para Juazeiro (BA) e, atualmente, mora em Santa Maria da Boa Vista (PE), cidade muito próxima a Petrolina, onde também morou por alguns anos. O artista, que conhecemos no dia 20 de outubro de 2019, tornou-se cantor de Arrocha e Sertanejo, nos espaços populares, quando sua história de vida o levou para estes municípios banhados pelo Velho Chico.

Sua infância foi na zona rural onde cresceu com seus pais agricultores. Na época, já cantava, ainda muito pequeno, para os familiares e recebia promessas de ganhar um violão. O acesso ao instrumento só foi possível anos depois por meio de uma doação, caracterizando sua prática musical e suas estratégias de apresentação nas ruas a partir das ajudas e colaborações que recebe de conhecidos, muito além das contribuições espontâneas em dinheiro. As menções ao suporte que recebe de amigos são recorrentes em sua narrativa e marcam sua forma de estabelecer uma rede cooperativa que, muitas vezes, não é constituída por outros profissionais da música, mas por pessoas que passam a considerar significativa a sua trajetória de vida.

Vivenciando essas interações, acompanhamos Damião em uma apresentação na barca Santa Maria que é uma entre tantas que fazem o transporte coletivo de passageiros entre Petrolina e Juazeiro pelo rio. Em nossa conversa, Damião diz que não tem formação profissional, mas que decidiu cantar e tocar – “Muitas pessoas foram me ajudando, contribuindo e, hoje, eu agradeço a Deus por todas as pessoas que me ajudaram aqui em Juazeiro, em Petrolina. Agradeço a todo mundo. Eu não estou rico, mas estou vivo e estou feliz com todos que me ajudaram”. Nesse sentido, a música, que era uma brincadeira de criança, o levou a se desviar do trabalho de agricultor que o pai exercia. Sua resistência na atividade musical se dá com a sensibilização de pessoas que entendem seus objetivos nos espaços populares. Além das colaborações espontâneas em pequenos valores (como dois, cinco ou dez Reais), Damião nos conta que vai encontrando oportunidades em algumas rádios locais e em festas particulares também. Estas são outras práticas que, segundo o artista, aparecem a partir da sua insistência em estar nas ruas e nas barcas, estas são suas principais vitrines para exibição.

Um estilo musical específico se faz presente nas apresentações: o Arrocha e seus contatos com o Sertanejo e a atual “Sofrência”. A preferência por essa linha da música romântica de massa se reflete, também, em seu figurino: uma camisa de botão e mangas compridas, calça jeans, botas e, como acessório, uma corrente dourada com um medalhão. Especificamente para este nosso encontro, Damião levou seu equipamento: uma caixa de som onde é acoplado um microfone com fio. A caixa está sincronizada ao Bluetooth do smartphone com o qual o artista escolhe a versão eletrônica (com bases de teclado) das músicas que selecionou para cantar. Esta forma de acesso e divulgação da música está no cerne do surgimento do Arrocha na periferia da Região Metropolitana de Salvador no início dos anos 2000. O uso de tecnologias de baixo custo e a internet facilitaram a organização de pequenos estúdios de gravação em bairros periféricos nas capitais e, também, nas pequenas cidades. Neste universo de produção, novos segmentos musicais se massificaram rapidamente em todo país.

Maneiras de dançar, de consumir e temáticas particulares são reproduzidas e se tornam marcas de gêneros musicais que impulsionam, em seus seguidores, uma série de valores e discursos, principalmente, sobre as relações amorosas.

Herdeiro do bolero e das serestas, a base rítmica do arrocha é suportada, inicialmente, por um teclado-arranjador (que contém ferramentas específicas para criação de arranjos) e uma guitarra. As letras têm como assunto principal o sofrimento, sempre de amor, tema constante nas canções do gênero. (…). Adotar a sentimentalidade como temática de suas músicas falando dos devaneios vividos por uma grande parcela do público consumidor foi um fator importante para a projeção do arrocha. A intensa paixão abordada nas letras faz do gênero um representante genuíno da latinidade brasileira e provoca identificação com boa parte do público (VLADI, 2015, p. 10).

Apesar de sua intensa distribuição, o arrocha foi ignorado pela grande indústria musical por muito tempo. O que não impediu que seus sujeitos/criadores estruturassem uma complexa cadeia de interlocuções entre culturas regionais e culturas globais a partir de diretrizes da música POP mundial. Nesse sentido, Damião Santos exerce o Arrocha nas ruas de Petrolina, Juazeiro e Santa Maria em um sentido que vai além de sua preferência pessoal pelo estilo. Sobretudo, ele matem o cruzamento entre seus referenciais locais (identificação com o mundo rural, vaquejadas e criações de gado) e elementos estéticos musicais e mercadológicos que repercutem nos grandes centros urbanos também.

As ruas e o passeio na barca são os espaços/situações em que sensações individuais são absorvidas por uma coletividade e Damião sabe que não pode dar vez para a timidez ou retraimento: “Eu nunca tive vergonha de me apresentar nas ruas. Eu chego assim, coloco a caixa [de som] ou o violão, começo a tocar e ali me apresento. Eu não tenho vergonha. A única vergonha que eu não gosto de fazer é praticar coisa errada. Mas, pro lado da música…chegou, cantou. Eu não tenho vergonha de nada. Me apresentar, ser humilde com as pessoas, respeitar as pessoas. Graças a Deus, todo mundo me conhece e meu jeito é esse”. Ser um cantor nas ruas requer coragem, ser destemido; mas, sobretudo, é preciso um acordo social de boa convivência com as pessoas. Essa preocupação reitera o caráter imprevisível do comportamento do público e a necessidade do artista, nos espaços populares, sensibilizar para a aceitação da sua atividade.

Dentro da barca Santa Maria, Damião acomoda a caixa de som no chão da embarcação e se posiciona de frente para os passageiros. O som do motor da barca é altíssimo e o microfone se faz muito necessário, torna-se compreensível, portanto, a escolha do equipamento para aquele lugar. Inicia sua apresentação cumprimentando o público, dizendo seu nome e solicitando a contribuição voluntária daqueles que gostarem de seu trabalho. A primeira música que canta é a “Não deixo não” muito conhecida na voz do cantor Mano Walter: “Ela me fez comprar um carro, logo eu que amava meu cavalo/ Ela me fez vender meu gado pra morar no condomínio fechado/ Me deu um tênis, falou que a botina não combina mais com a gente/ Mas que menina indecente/ Aí não aguentei e falei o que o coração sente/ Vá pro inferno com seu amor!/ Deixar de ser pião, ouvir modão, meu violão, não deixo não/ Largar o meu chapéu pra usar gel, meu Deus do céu, não deixo não/ Não tem amor que vale isso não”.

Mantendo a postura que inventa um “palco” improvável, a comunicação do artista com o público é constante. Enquanto não retoma as letras das canções, Damião transmite alguns recados, agradece ao dono da barca, divulga o nome o do nosso projeto “O Palco é a Rua” já que nós, com equipamentos para registro audiovisual, não teríamos como passar despercebidos na situação. O repertório vai sendo integrado à paisagem que ganha movimento junto à embarcação, alguns passageiros, mesmo distraídos, dançam ou demonstram envolvimento com o ritmo. A sequência da apresentação se dá com músicas que falam sobre festas, diversão e mais “sofrência” romântica com as canções “Seu polícia”, de Zé Neto e Fabiano, e “Porque homem não chora” de Pablo.

Tendo consciência de que o Arrocha e o Sertanejo têm grande público na região, Damião justifica sua ação nos espaços públicos, também, a partir de sua própria história de vida: “Eu resolvi tocar na barca e em espaço público porque, quando eu saí de casa, eu perdi minha avó – eu morava com meus avós – e, depois que eu perdi  aminha avó, eu fiquei sozinho, abandonado, não tinha um emprego. Aí, vim para Juazeiro e resolvi viver. Morei na rua, passei fome. Depois as coisas foram apertando. Mas, Deus é tão bom, tão maravilhoso, que as coisas, aos poucos, foram melhorando e apareceram algumas pessoas, foram me chamando pra levar pra um condomínio, tocar alguma coisa. Agradeço a Cardoso do Condomínio Santo Antônio. Agradeço ao pessoal da barquinha. Todo mundo aqui de Juazeiro, o Gaúcho. Essas pessoas que me acolheram. (…). O pessoal do bar do Gordo. O pessoal todo acolhedor, eles estendem a mão”. As amizades foram os instrumentos sociais para acrescentar oportunidades e novos palcos. Ao lado dessa estratégia, Damião adiciona, atualmente, o intenso uso de redes sociais para divulgar vídeos e áudios, sendo este um outro circuito de comunicação e contato de grande importância em seu cotidiano.

Justamente nestas ações corriqueiras, ele vive o prazer e as dificuldades de ser artista nos espaços populares, buscando sempre consolidar os laços de amizade e colaboração, indo e voltando em suas atividades, mas sempre entendendo seu modo de comunicar e chamar atenção dos transeuntes: “A música na rua é bom. O caba (sic) está cantando, algumas pessoas estão sentadas, outros estão prestando atenção. Um pede uma música, outro dá um ajuda. É muito bom. Eu gosto muito de fazer esse trabalho. Eu sou apaixonado por fazer esse estilo de trabalho”. Assim, Damião Santos se mantém indo e voltando entre as cidades próximas ao São Francisco, desempenhando seu canto e reverberando as paixões do Arrocha.


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