André Natureza


Por Theia Produtores Associados em 12/ago/2020

O cantor e compositor Manoel André Neto propõe, nas ruas e praças de Petrolina (PE), uma encruzilhada simbólica sobre o Sertão para dar forma ao projeto musical e poético que leva à frente o seu nome artístico: André Natureza.

Nascido na cidade de Fortaleza (capital – CE), André foi criado em Quixeramobim, no sertão cearense, onde a música foi se fazendo presente em sua vida por meio das amizades e dos hábitos boêmios nos “barzinhos”. Referindo-se a esta prática muito comum a cantores e músicos iniciantes em todo o Nordeste, contou-nos que os bares foram os espaços em que começou a encarar o público e a aprender com os parceiros de composição e de apresentação que atuavam no mesmo circuito. Aliás, na entrevista que realizamos no dia 22 de outubro de 2019, os amigos foram referendados como “escolas musicais” para voz e violão que o artista teve na cidade onde cresceu, lugar que marca suas memórias de infância relacionando os hábitos da cidade e das áreas rurais mais próximas, consolidando suas imagens mais afetivas sobre o sertão e o que significa ser sertanejo.

Há seis anos, o artista vive em Petrolina e trabalha como servidor público. Contou-nos que, logo que chegou para morar nesse outro sertão, às margens do São Francisco, ele estava “musicalmente adormecido”. Um breve diálogo com uma amiga o despertou e o levou a um processo de busca pelo modo de atuação musical que melhor se encaixaria em sua relação particular com a cidade pernambucana. Iniciou-se, então, uma procura sonora que se transformou na defesa de um olhar narrativo sobre a representação mais consolidada e propagada do Sertão a partir dos conceitos regionalistas que emergiram no século XX. Idealizações estéticas entre o espaço natural (geografia e meio ambiente) e a representação humana em práticas de sobrevivência, de crenças e perpetuações dos costumes (ALBUQUERQUE JR., 2011).

A Praça 21 de Setembro, em bairro central de Petrolina onde encontramos André Natureza, é a espacialidade cercada por asfalto, carros, concreto, edifícios, restaurantes e outros serviços comerciais que espelha, no tempo presente, uma urbanidade aparentemente estranha aos significados poéticos reverenciados pelo artista em canções e poemas recitados. O espaço popular é escolhido para que as pessoas acessem sua proposta musical gratuitamente e com a proximidade que incentiva as conversas e outras interações. Nesse sentido, André Natureza deixa muito claro que não tem o interesse de obter retorno financeiro com seu projeto nas ruas e, por isso, não disponibiliza uma caixa ou chapéu para recolher colaborações. Abertamente, fala sobre a vontade de cantar a temática escolhida e de afirmar uma necessidade humana: “A gente sabe, todo mundo é necessitado de cultura. O Sertão mesmo, ele tem muito o que reaflorar, que renascer dentro das pessoas, e o nosso papel é esse: é o de levar de forma gratuita cultura às ruas, alimentar a alma nordestina do pessoal”.

O uso de palavras como reaflorar e renascer denota o sentido de resistência, como se um conceito de Sertão estivesse deixando de ser vivido ou de ser lembrado. A dinâmica do tempo histórico da representatividade sertaneja levaria, portanto, à necessidade de afirmar que uma memória coletiva está em vias de ser desaprendida, como se estivesse sempre atrelada à condição de quase desaparecimento. Diante disso, o músico passa a abordar uma prática que tem como objetivo a retomada de um sentimento do qual, no seu ponto de vista, todos parecem fazer parte, aquilo que nosso entrevistado chamou de alma nordestina.

Em nosso registro audiovisual é possível perceber como André Natureza seleciona seu repertório de modo a articular a prática da voz e violão dos barzinhos com sua proposição de cultura regional para as ruas e praças da cidade. Abaixo de uma árvore, o músico se apresenta com um violão elétrico, pedestal com microfone, pedestal com letras e cifras das canções, duas caixas de som (uma para retorno e outra para o público), tudo acompanhado de pequenos objetos que ajudam a inventar uma cenografia. Ao lado do cantor, encontra-se instalado um pequeno tamborete de couro que carrega uma placa com o nome “André Natureza” e uma ilustração que remete a uma paisagem sertaneja genérica. Nesse tamborete, encontra-se apoiado o livro “Retratos do Sertão” do poeta Marcos Passos (São José do Egito – PE) que o nosso artista considera a sua “bíblia do sertão”. Ao falar sobre a antologia poética, André nos diz que “onde você abre, vê o Sertão retratado de várias formas, por vários artistas. Muita coisa linda. Fala do [sertão] do Pajeú, fala da cidade, fala do sertão, do gado, fala do vaqueiro, fala do relampejar, da chuva, da seca. Então, você tem vários elementos ali”.

Exaltando este referencial poético específico, a escolha do repertório a ser apresentado nas ruas interliga a amplitude social dessa memória cultural (entre a vivência pessoal na infância e as representações literárias que se fazem mais presentes) com as canções que o artista foi conhecendo com seus companheiros musicais ao longo dos anos. Junto às músicas mais conhecidas de outros autores, são apresentadas composições próprias que se mantêm na mesma linha temática e que tratam diretamente do saudosismo mais íntimo em relação ao município de origem e ao modo de se integrar ao ambiente natural sertanejo (ecossistêmico).

Com a montagem da situação artística na praça em Petrolina, a postura do cantor desloca a prática adquirida nos bares e restaurantes para uma circunstância de contemplação. Considerando que no barzinho os clientes estão mais propensos a consumir e conversar entre os seus, André aponta que apresentar-se nas ruas lhe dá muito mais prazer e o coloca na busca de sua satisfação pessoal. Conta-nos que nas ruas e praças “você tem interação de pessoas, muita espontaneidade das pessoas com o artista. O pessoal para, conversa, interage de alguma forma e, às vezes, isso não acontece na noite, nos barzinhos”. O artista cria para si e para sua sonoridade uma ambiência com nova significação incluindo outros elementos naturais do entorno, como, por exemplo, o gramado da praça, o canto de pássaros típicos de locais arborizados em grandes centros urbanos, a interferência do vento e da luminosidade em nossas sensações que se deixam conduzir pela narrativa regional que o cantor expressa. Assumindo, também, uma dimensão de personagem, o músico usa um chapéu de couro como marca para um figurino que está de acordo com o universo imagético com o qual trabalha. Dessa forma, passou a observar, em diálogos com transeuntes, que consegue acessar o imaginário e a memória compartilhada, principalmente, pelos moradores e passantes mais velhos, da mesma forma que aguça a curiosidade dos mais jovens.

Em outubro de 2019, quando realizamos o campo de pesquisa em Petrolina, André Natureza estava iniciando suas atividades nos espaços populares e já mencionava um tipo de negociação que precisava exercer, principalmente, com estabelecimentos comerciais para conseguir pontos de energia fundamentais para ligar os equipamentos e instrumentos nos “palcos” públicos visitados: “Nesse trabalho de rua, a gente depende, para sonorização, de energia. Essa é a maior dificuldade, a energia. Porque você não tem disponível nas praças, acredito que por uma questão de segurança, e sempre tem que estar pedindo nos comércios. Não são todos os comerciantes que aceitam, muita gente diz que a conta de luz já vem cara”. Diante das negativas, o artista tenta argumentar e explicar sua intenção de levar “cultura, para as pessoas, sem fins lucrativos”. Algumas vezes, consegue sensibilizar comerciantes locais e faz as ligações elétricas com extensos fios que conectam microfone, caixas de som e violão. Mediante esse desafio prático de ocupação do território público, André Natureza ressalta, sobretudo, o caráter espontâneo com que toda a ação se desenvolve. Espontaneidade que vem da vontade que o artista pode ter, ou não, de ir às ruas cantar e tocar e que se soma às possibilidades de abertura dos comerciantes e dos moradores/transeuntes. Em suas palavras, a ação nas ruas ganha a semelhança de um momento de inspiração: “Esse trabalho cultural aflora de forma muito espontânea, então não tem como você dizer – ‘Prefeitura, vou precisar de energia dia tal para fazer uma apresentação’. Não é assim. Na verdade, ele surge. O dia amanhece, você olha e diz – ‘tenho que levar música para a rua’. É como compor, a coisa chega”.

Com essa concepção da arte advinda da inspiração, André Natureza se coloca no espaço urbano fazendo dele um cenário e expondo com clareza seu conceito artístico. Partilha e dá continuidade a uma visão saudosista do passado que, ao mesmo tempo, defende a vigência dos referidos valores regionais na atualidade. Assim, movimenta um cruzamento simbólico de afetos e imagens que unem geografias do semiárido nordestino e imaginários sertanejos. Sobrepõe, portanto, Quixeramobim, Petrolina, a musicalidade e a poesia literária regional. O artista, em sua prática nas ruas, proporciona, sobretudo, uma possibilidade de questionamento dos hábitos de consumo artístico numa cidade como Petrolina, e migra, em sua trajetória, dos barzinhos para o contato direto e aberto com o público dos espaços populares. Sua insistência em ressaltar a importância de um projeto que não objetiva retorno financeiro, faz do artista um observador da urgência em promover a fruição artística em seu estado mais puro e de fortalecer uma seara de identificação coletiva com determinado segmento musical e poético. O resultado da experiência impulsiona questionamentos sobre como a música nos espaços populares pode contribuir para a formação de públicos locais e para sensibilização diante do fazer musical independente. Podemos dizer que, na praça que se torna “palco”, a paisagem ganha a “cenografia” que consegue trazer o contexto utilitarista ao redor (trabalhar, morar, ir e voltar) para dialogar com o conceito artístico vivido. Em sua história de vida e em seu discurso particulares, André Natureza transfere para a sua própria prática de músico/cantor/compositor o status que as obras de arte têm para a maior parte das pessoas: a qualidade de ser fruto (afloramento) de uma inspiração criadora.

Boas leituras:

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. “A invenção do Nordeste e outras artes”. 5ª edição, São Paulo: Cortez, 2011.

SILVA, Kalina Vanderlei. “Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII”. Recife: CEPE, 2010.


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