Por Theia Produtores Associados em 28/nov/2019
O projeto O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares, atualmente, está se desenvolvendo em um percurso pelas quatro Macrorregiões do Estado de Pernambuco e nossa primeira parada foi no Sertão do São Francisco, mais precisamente em Petrolina e seu entorno. Ao longo de quatro meses, vamos registrar a atuação de músicos, bandas, cantores/cantadores/poetas que se apresentam nos espaços populares, também, no Agreste, na Zona da Mata e na Região Metropolitana do Recife, com incentivo do Funcultura da Música (Fundarpe, Secretaria de Cultura – Governo de Pernambuco). Como resultado, sempre divulgaremos o conteúdo em audiovisual, textos e imagens no nosso site e em nossas redes sociais.
A cidade de Petrolina e sua região entrou em nossa rota para contribuir com o quadro de referenciais urbanos que interligam pessoas de diferentes origens em um contexto paradoxal de relevância econômica com desigualdades sociais, onde surgem expressões artísticas de resistência popular e, também, de mergulho experimental em constante diálogo com o mundo. Em sua paisagem, a verticalização imobiliária circunda os laços cotidianos que as pessoas mantêm com o rio São Francisco para locomoção, lazer, comércio, turismo, contemplação e, também, para as artes das ruas.
Logo em nosso primeiro dia de pesquisa de campo (16/10/2019), tivemos conhecimento de que o compositor Francisco de Assis da Silva, artisticamente conhecido como Diassis Torres, estava tocando seu violão e cantando em Juazeiro (BA). Realizamos, portanto, nosso primeiro traslado em uma das barcas que navegam o grande rio como transporte coletivo e que nos levou direto para o centro da cidade vizinha a Petrolina. Em poucos minutos, encontramos Diassis Torres se apresentando diante de uma casa lotérica localizada em frente à Praça Barão do Rio Branco, uma movimentada área comercial e, também, próxima ao Paço Municipal e agências bancárias. A engrenagem dos acordos entre a prática musical e a paisagem que lhe serve de cenário já dá a noção da mistura de sons e ruídos que ronda o trabalho de um músico que se apresenta nos espaços populares.
Motores, buzinas, vendedores ambulantes, anúncios em carros de som e muitas vozes atravessam a música e o canto de Diassis Torres e, consequentemente, invadem nossa captação de áudio durante o registro, o que nos faz entender que esta é uma implicação que caracteriza uma pesquisa dessa natureza. Caracteriza, sobretudo, a fruição da música nos ambientes públicos. Dessa forma, procuramos não minimizar o caos sonoro e o mantemos, na produção audiovisual, como um dado estético e de vivência coletiva importante para entendermos essa ação cultural.
Como em qualquer “palco”, o artista busca o melhor posicionamento corporal diante do público. Nesse sentido, Diassis se localiza encostado no corrimão da rampa de entrada da lotérica e se coloca de frente para os clientes que entram e saem da loja. Apresenta-se apenas com o violão e deixa aberta uma caixinha de papelão um pouco diante dos seus pés para receber colaborações dos passantes. O fato de ser uma casa lotérica já indica a intenção de poder receber moedas provenientes de trocos ou, quem sabe, maiores valores.
Esse primeiro momento revela, também, o seu estilo gospel adotado em composições próprias e de outros autores desta vertente musical na região. A quantidade de transeuntes é grande e, ao anunciar o nome da música que está prestes a cantar, Diassis fala uma breve mensagem religiosa que justifica sua escolha de repertório. As melodias executadas carregam o conservadorismo que condiz com a ascese religiosa e privilegia a letra cantada com segurança e com uma empostação de voz que dispensa, por exemplo, o uso de um microfone para chamar atenção do público. Percebemos que as pessoas que comungam da mesma religiosidade fazem questão de cantarolar ou, até mesmo, cantar junto a Diassis Torres que se dedica exclusivamente ao projeto pessoal de reverberação dessa mensagem cristã ligada às igrejas pentecostais. Diante das manifestações de participação e/ou de aceitação, o cantor troca olhares, sorri e agradece as colaborações em dinheiro com um cumprimento corporal. Sem parar de cantar, Diassis Torres vai estabelecendo uma comunicação que demonstra sua experiência e traquejo, até mesmo, com os admiradores mais empolgados e atende aos pedidos para tocar músicas específicas. Com a aproximação de nossa câmera e microfone, que estavam um pouco distanciados, o artista não se incomoda e mantem sua postura com tranquilidade, como quem já tem certa intimidade com esse tipo de equipamento.
A expressão do artista, enquanto interpreta as canções, demonstra sintonia com as letras das composições que carregam uma percepção positiva sobre a fé religiosa defendida. Nesse sentido, palavras como “vitória”, “prosperidade” e “glória” são comuns em suas músicas que encontram um lugar de popularização no contexto de intenso movimento. Como dito, ele se coloca na calçada/rampa de acesso à casa lotérica e está de costas para a rua. Por detrás, o movimento de carros é intenso às dez horas da manhã e a forte luz do dia potencializa as cores e dá destaque ao antigo prédio do Paço Municipal. Pertencente ao cenário, Diassis, além de cantar diretamente para os passantes, está protegido do sol escaldante pelo toldo da porta da lotérica, o que indica mais um fator estratégico para a escolha do local. Apesar de todo o vai e vem ao redor, a cidade apresenta um ritmo que a faz estar entre a aceleração urbana e os hábitos mais tradicionais e, dessa forma, o espaço e os deslocamentos são receptivos ao tipo de canto que Diassis desempenha.
A integração ao panorama de comportamentos resulta, repentinamente, na chegada de um cidadão que começa a cantar como quem quer reproduzir o mesmo tom vocal de Diassis e faz o músico dividir a “cena” com ele, como em um “dueto”. Além de cantar, o participante inicia um breve diálogo religioso que atravessa o canto do artista e, consequentemente, o nosso registro. Toda a circunstância é marcada por uma aceitação e valorização de uma específica temática religiosa que é reafirmada como uma qualidade para a atuação nas ruas. Por este viés, a interação e a ajuda em dinheiro dada ao artista estão ligadas à necessidade dos fieis demonstrarem socialmente o pertencimento à essa moral cristã abordada, o que ocasiona grande venda dos cds que Diassis Torres grava de forma independente e vende, também, durante suas apresentações.
Maiores detalhes sobre a trajetória e o ofício do nosso artista/personagem nos foram passados por meio de uma entrevista que realizamos após o contato inicial. Nascido em Ouricuri (PE), Diassis mora há mais de dez anos em Petrolina e, desde os vinte anos de idade, o seu foco é o violão, apesar de conhecer uma base de contrabaixo e guitarra. Além de conseguir tirar o sustento de sua família com as apresentações nas ruas, canta na igreja evangélica que frequenta em Petrolina no bairro de São Gonçalo. De acordo com o seu relato, aquele foi o espaço social fundamental para descobrir uma “missão” com a música e vislumbrar uma carreira profissional. No entanto, sua narrativa de vida revela uma aproximação intuitiva com o instrumento musical em uma lógica de aprendizado comumente chamada de autodidatismo. Ele afirma que seu estudo se deu “naturalmente” e que não frequentou uma escola formal de música, tendo desenvolvido sua habilidade pegando “de ouvido” mesmo.
Estamos lidando, na verdade, com um processo de formação do músico que envolve sentidos perceptivos do corpo – como audição, visão, tato e corporeidade – e da memória. Segundo Simone Lacorte Recôva, tal aprendizado informal passa pela Escuta Atenta (observação da execução harmônica que integra os atos de ouvir e de olhar como o instrumento é executado) e pela Escuta Intencional (aquela que leva à repetição de exercícios). Como um todo, a formação popular envolve contatos afetivos com pessoas do círculo íntimo do aprendiz e se estende à expressividade e ao uso de tecnologias para a criação e para o encontro direto com o público.
No caso específico de Diassis Torres, a entrada da música no seu cotidiano se deu por meio de seus irmãos mais velhos que tinham violão em casa. Depois de ouvir muitas reclamações porque costumava desafinar os instrumentos em suas tentativas de memorizar as notas e canções, o jovem Francisco de Assis produziu seu próprio violão com flandre, como ele nos contou no seguinte trecho: “Encontrei o braço de um violão num lugar e, aí, fiz o restante do violão, coloquei umas cordas de nylon e comecei a dar as notas. Eu fiquei muito tempo com esse violãozinho que eu fiz, aprendi bastante nele”.
Ao falar sobre como iniciou a compor, o cantor relata a sua entrada para a igreja e atribui sua criação musical a um “dom” desenvolvido depois que aceitou “O Senhor Jesus” na sua vida há mais de dezesseis anos. Essa elaboração de significado e da representação de si, enquanto artista, faz da história de vida uma travessia para um mundo social particular que envolve todos os objetivos da música como um trabalho/ofício e como fonte de renda para o nosso entrevistado. Exatamente a auto compreensão como artista profissional nas ruas é o dado que cruza a necessidade de sobrevivência com a idealização da propagação da mensagem religiosa. Quando perguntado sobre suas motivações para tocar e cantar em tais lugares, Diassis Torres responde que: “Foi um desejo do meu coração através…lendo a bíblia, sabe? Quando o Senhor Jesus diz que a gente devia ir, todo mundo, pregar o Evangelho a todos, né? E, assim, nasceu aquele desejo de mostrar o meu trabalho nas ruas e com o intuito de levar uma mensagem de esperança, uma mensagem de vida, para outras pessoas, também, através do louvor”. Esta justificativa está em consonância com a elevada aceitação social que a música gospel encontra e podemos entender isso quando perguntamos se o artista consegue se sustentar com o que ganha nas ruas espontaneamente e vendendo seus cds. Diante da questão, ele responde: “Então, já faz mais de cinco anos que eu deixei a área da borracharia e consigo sustentar a minha casa só através desse trabalho. Vendo meu cd, divulgo meu próprio cd. A gente, também, vende pendrive e as pessoas também contribuem com o nosso trabalho. Dão, assim, umas contribuições voluntárias e eu tenho, ultimamente, sustentado a minha casa com esse trabalho”.
Conscientemente voltado para a vocação religiosa, Diassis Torres integra, também, a manutenção dos espaços populares como territórios da arte em prática coletiva que estimula participações e circuitos de ação por fora do mercado supervalorizado pelo senso comum. Assim, a música entrecruza outros níveis sensoriais como, por exemplo, na vivência da barca (transporte coletivo) como plataforma de apresentação. Nesse momento, outro sentido de travessia é agregado: a locomoção de uma cidade para a outra pelo rio. Nessa condição, a interação com o público muda e passa a ser de maior diálogo sobre os temas cantados. A relação muda porque a barca proporciona posicionamentos corporais quase semelhante aos que ocorrem em um teatro. Todos os passageiros se sentam voltados para a cabine e, à frente dela, Diassis Torres toca e canta. O que temos, então, é um artista diante de uma plateia que flutua sobre o rio São Francisco no deslocamento entre Juazeiro e Petrolina. O vento, a luminosidade, as aves, o ruído do motor, tudo passa a fazer parte da situação artística, tornando único aquele encontro.
O público expõe sua diversidade entre a escuta atenta e a escuta distraída, entre o reconhecimento e o distanciamento. Contudo, a música, inegavelmente, invade o espaço-tempo de contemplação da natureza, de sentir o vento e de proximidade com a água caudalosa verde escura, onde a barca vai desenhando um caminho entre ilhotas, com densa vegetação, que contrastam com a grande ponte e os edifícios que dominam o horizonte.
Ultrapassando o conteúdo mais evidente que uma expressão musical pode anunciar, a situação artística é produzida pelos diversos elementos naturais e humanos que se agregam em permanente transformação. Uma atuação profissional específica é exercida independente das regras do grande mercado do entretenimento e busca normas particulares de reconhecimento e permissão social para existir. A partir destas redefinições cotidianas, Diassis Torres propõe um projeto popular para a música vivenciando travessias.
Boa leitura:
RECÔVA, Simone Lacorte. “Aprendizagem do Músico Popular: um processo de percepção através dos sentidos?”. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília, 2006.