Por Theia Produtores Associados em 17/jan/2020
Os espaços populares como territórios de interações e musicalidades não estão reduzidos às perspectivas do instrumentista, compositor/cantor que engendra um “palco” em um “cenário” urbano ou que se adapta à realidade e aos acontecimentos situacionais das ruas para mostrar seu trabalho em troca de contribuições espontâneas. A arte, em suas diversas possibilidades, não cumpre o papel de apenas invadir os lugares públicos, ela também emerge deles e se torna cultura no sentido de ser uma ferramenta mobilizada pelos atores sociais na elaboração de discursos, práticas e na luta pelo direito à fala, à expressividade e outras corporalidades.
Especificamente no sentido de pertencimento a uma manifestação coletiva, a presença da poesia improvisada, rimada e ritmada sempre foi um objeto de estudo previsto em nosso planejamento de pesquisa nas quatro Macrorregiões de Pernambuco, considerando, principalmente, a potência e a importância dos violeiros repentistas, dos cordelistas e dos emboladores nos terrenos da cultura popular como feiras, mercados e áreas turísticas. Obviamente, as manifestações das ruas que se colocam na interseção entre música e poesia não ficariam restritas às tradições da cultura popular nordestina e o Sertão do São Francisco, em cidades como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), não está engessado no estereótipo “inventado” e difundido sobre a região. Nesse sentido, nossa equipe de pesquisa não se surpreendeu ao encontrar ações coletivas para disseminar o Rap e a cultura Hip-Hop a partir de jovens organizados e ativadores de determinadas localidades públicas.
Por meio de músicos produtores locais e parceiros do nosso projeto de pesquisa, tivemos acesso aos organizadores da Batalha daPista que acontece na pista de skate de Juazeiro (BA) às margens do rio São Francisco. Na noite do dia 19 de outubro de 2019, às 20h, encontramos os integrantes, entre público e MCs, iniciando as atividades. Uma batalha de MCs é formada por uma roda de participantes que instigam dois poetas – os MCs – a disputarem argumentos por meio de rimas improvisadas – freestyle – que acompanham uma batida – ou beat – específica. Ainda sobre o funcionamento desse tipo de Roda ou Batalha, torna-se importante esclarecer que toda disputa conta com um mediador que controla o tempo de rima e promove a votação para que o público ao redor decida o vencedor de cada “round” e, por fim, o vencedor da batalha. Organizada por Matheus Mansur – o MC 2M –, a Batalha da Pista contava com a presença de, pelo menos, vinte a trinta pessoas. A batida era emitida por uma caixa de som portátil sincronizada via bluetooth com os celulares dos membros do movimento.
A batalha acontecia em meio a outras ações de ocupação do espaço, como praticantes de skate e de manobras com bicicletas. A partir de nossos diálogos e registros de entrevistas, percebemos que a maioria deles moram em bairros periféricos e compõem uma juventude negra que estabelece ações artísticas de forma completamente independente. Para tanto, os organizadores pedem colaborações aos frequentadores para que a atividade tenha continuidade, possa ser divulgada e os vencedores possam ser premiados. De forma geral, o que se procura manter é a constituição de um espaço para a plena expressão de temas do cotidiano por meio do freestyle que, ao lado da batida, é criado associado à performance. Alguns MCs disputam com um beat mais lento, outros preferem o mais acelerado e isso influencia a potência corporal, a expressão facial e as reações do público que está constantemente interagindo com os discursos feitos no calor do “confronto” de ideias.
No caso da Batalha da Pista de Juazeiro, presenciamos, em muitos momentos, o que a cultura do rap chama de “batalha de sangue”. Nessa modalidade, um MC procura desmoralizar o seu opositor e colocar-se em posição superior sem limites ou censuras. Poderíamos entender como um “vale tudo” no improviso. Em suas rimas, os MCs da Batalha da Pista abordaram política, racismo, sexualidade, repressão policial, consumo de drogas e outros temas. Na maioria das vezes, tais assuntos permeiam a necessidade de se colocar como superior ao oponente e, em vários sentidos, preconceitos e discriminações afloram como forma de combate. Diante das rimas mais polêmicas, digamos assim, os frequentadores se manifestam discordando do MC ou enfatizando o tom desafiador da proposta. Torna-se importante ressaltar que os conteúdos e as práticas estão em intensa mudança. Tratando-se do rap e da cultura de batalhas no século 21, a internet e outras tecnologias para a música e as festas de rua estimulam a circulação de variadas referências e focos de produção no país todo (TEPERMAN, 2015).
Sobretudo, precisamos atentar para uma prática coletiva que ganha novos contornos em interações presenciais e por meio das redes sociais em perfis e páginas que divulgam a batalha e permitem a articulação com outros contextos de realização. O cotidiano apresenta uma estratégia artística que faz convergir, em uma área central da cidade, o encontro de adolescentes e jovens de vários bairros tanto de Juazeiro quanto de Petrolina. Nesse sentido, o público cativo se fixa no espaço urbano para a arte e, diferentemente, dos registros já exibidos nesta pesquisa, as pessoas não atravessam rapidamente esse espaço em uma fruição transitória. Esta é a situação colaborativa e organizada que se dá sem participação direta do poder público, mas que precisa estar em recorrente diálogo com este último. Reconhecemos a construção do diálogo na medida em que nem todas as circunstâncias são de conflito social, apesar do contexto ser simbólica e efetivamente de reconhecimento micropolítico.
O rap como manifestação de rua é uma vivência que se impõe na conversa que tivemos, por exemplo, com MC 2M. Quando perguntado sobre o dia-dia dos músicos de rua entre Petrolina e Juazeiro, ele foca nas dificuldades: “é uma situação muito precária porque a prefeitura não ajuda e a gente tem que fazer com o nosso próprio dinheiro, a gente tem que correr atrás e, ainda, é uma coisa muito mal vista aqui porque, na região, como é Bahia, eles preferem Axé, Pagode, mas a gente tá com o Rap aqui mostrando mensagem, passando a nossa visão. Porque, querendo ou não, batalha, músico, rapper, é liberdade de expressão. A gente expressa o que a gente sente e o que a gente pensa sobre toda a situação”. Ao estender sua percepção sobre a música e a arte nos espaços populares no restante do país, 2M inclui perspectivas da indústria musical e de carreira profissional: “No país em si é uma coisa muito desvalorizada porque quando o pessoal vê um artista de rua já fala que é malandro, que não presta e que nunca vai subir na vida. E a gente está correndo atrás, a gente tá dando o melhor e é a mesma coisa de outras pessoas que fazem em estúdio…que são grandes astros, sempre começaram de baixo. E o que a gente faz pra viver? A gente tem que trabalhar entre outras coisas porque ainda não dá para viver com nossa arte, nossa música, nossa batalha”. Enquanto processo coletivo, o rap e as batalhas exigem muito da dedicação de seus integrantes. A prática não se resume a um momento de lazer ou diversão, dedica-se tempo de aprimoramento no improviso, de divulgação dos eventos e para arregimentar colaboradores.
No entanto, a fala que enfatiza tantas precariedades, também, foca a natureza social do trabalho desenvolvido. Perguntado sobre como é o convívio ao ar livre e como é fazer poesia para tanta gente, M2 afirma que “isso é a primeira lei do Rap. O Rap prega a união. Então, agente não importa com gênero, não importa com cor, não importa com nada (sic). Você vindo com a sua ideia, a gente vai com a nossa ideia. Vamos nos juntar e fazer o movimento crescer”.
Por falar nas questões inclusivas e participativas, nós não presenciamos batalhas com mulheres MCs naquela noite. As garotas estavam na plateia ajudando a formar a roda. Dentre elas, conversamos com Ana Luisa Jesus que é estudante do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) na UNIVASF. A estudante reitera a omissão das políticas públicas de cultura e educação diante do desenvolvimento da juventude das periferias na cidade. Em suas palavras, trata-se de uma “ação muito independente de, tipo, tomar a iniciativa para poder fazer o movimento” e que “no sentido de política pública, a gente não vê absolutamente nada”. Ana Luisa traz um olhar positivo, também, sobre a iniciativa do grupo: “eu acho massa, assim, essa coisa independente dos meninos, mas eu acho que no sentido de autonomia dos jovens aqui tem sido muito mais efetivo do que a questão política, a questão pública mesmo”. Como futura professora, nossa entrevistada ressalta a perda de um potencial pedagógico e inclusivo que poderia ser estruturado a partir do tipo de arena de conhecimento e de trocas que se estabelece na pista de skate da orla.
Uma dicotomia, contudo, caracteriza-se na presença/ausência do Estado e da Ordem Pública. O tema da repressão aparece em algumas conversas que realizamos durante o nosso registro. Alguns MCs ressaltaram que a Batalha da Pista, antes, acontecia em Petrolina, mas a quantidade de intervenções policiais fez o coletivo transferir para Juazeiro. Perguntado se havia mais repressão do lado pernambucano do que do lado baiano, o MC PH Ácido responde que “com certeza. Pernambuco é conservador pra caramba. Muito ‘branco’, muito misógino, bem mais problemático do que a Bahia”. Questionamos, em seguida, o motivo dessa diferença observada pelo MC em sua vivência e, na sua avaliação, “tem um processo de dominação política de uma elite reacionária há mais de 500 anos do lado de Petrolina. (…). Então, a polícia serve como mecanismo de repressão dessa elite reacionária que está sempre no poder em Petrolina”. Essa problemática esteve presente, também, na fala do MC Bruxo ao responder se sentia repressão policial. Nesse sentido, o entrevistado vai além do preconceito com a arte nas ruas e acrescenta o racismo em sua percepção: “Sim, nós sente (sic), sente muito, tá ligado? Quando sai da Batalha…eu sou muito de boa, vou pelo caminho mais de boa, vou com minha namorada, tá ligado? Aí, a polícia (sic) embaça menos. Mas, amigo meu que é mais preto que eu, (…), aí…a polícia já foi, tá ligado, enquadra mesmo. Isso é chato, não respeita muito essa ideia”. Vale ressaltar que a organização coletiva amadureceu sua estratégias de ação e de negociação com esses poderes externos ao fazer artístico. Como nos contou o MC Bruxo, a organização da Batalha conseguiu dialogar com policiais e com vizinhos da pista e passaram a ser aceitos sem maiores impedimentos.
O que podemos entender é que a cultura como instrumental para pertencimento e identidade simbólica dos atores sociais envolvidos é uma condição para a manutenção das rodas ou batalhas de rap enquanto circuitos de fala, visibilidade e representatividade desses jovens, ressaltando a capacidade de articulação e negociação em espaços públicos.
Entre outras camadas de interpretação dos fatos cotidianos, os MCs elaboram, também, uma concepção política, na dimensão do discurso como prática, da poesia e da arte. Questionado sobre a importância da relação entre poesia, política e arte nas ruas, PH Ácido responde que elas são “completamente imbrincadas. Elas não deixam de confluir uma na outra porque, na rua, é onde tem a democratização da informação, onde pode ter o acesso à cultura e o artista não pode deixar de estar na rua manifestando seu pensamento político, seja da forma que for. É muito importante em vários sentidos”.
Justamente as ideias de negociação do espaço público e de democratização entrelaçam a busca de apoio financeiro com a busca por liberdade de expressão. Sobre as contribuições que a Batalha recebe, 2M esclarece que o esquema é “mais colaborativo. A batalha não precisa de tantos recursos, mas a gente precisa muito de equipamento. Então, como tem um pouco de público, a gente sempre pede ‘traga dois Reais, traga três’ para poder juntar e a gente poder comprar nossos equipamentos, porque era para ser uma coisa da prefeitura. A prefeitura é que deveria ajudar os artistas de rua porque é nossa cultura, nossa vida aqui que a gente faz”. Enquanto forma poética e prática cidadã, a Batalha chamou atenção de Bruxo, por exemplo, como oportunidade de suprir o que falta em outras instância de sua vida: “Ah, velho, a ideia de vir pra rua foi por causa, tipo…sempre gostei, tá ligado, de arte de rua, grafite, sempre apoiei a questão da rima, sempre fui uma pessoa bem poética. Aí, eu via na rua o que eu não via na escola. Na escola, eu não conseguia ver aquele lado poético, aquele lado artístico e, na rua, eu via”.
Podemos dizer que nessa apreensão poética dos acontecimentos dos espaços populares, também, reside boa parte das considerações de cunho pedagógico levantadas, anteriormente, por Ana Luisa: “Eu estou fazendo licenciatura e, como eu trabalho muito com jovens, eu vejo como a juventude é muito incompreendida. A juventude é uma parte da vida muito capaz e mostrar coisas muito interessantes para a sociedade porque eles estão em fase de socialização, de expansão, e, nesse momento aqui, eles estão colocando ambições deles, vontades, desejos de poder e de conseguir coisas. De enfrentamento político (…). As coisas que eles falam aqui, às vezes, eles não podem falar, por exemplo, numa sala de aula. Não tem um outro espaço para eles estarem colocando essas coisas. Então, eu acho que é uma questão de tribo mesmo, de você encontrar uma tribo, um conjunto, um coletivo para você colaborar. Mas que tem essa questão do coletivo e do uso público também”.
Na Batalha da Pista de Juazeiro, assim como em muitas outras rodas de MCs, a poesia e a música não estão apenas para passar e atravessar os campos de interação popular. Estão, sobretudo, para a criação de um novo espaço/relação, uma estética/política cotidiana e novas articulações/pertencimento.
Boas Leituras:
CURA, Tayanne Fernandes. Tramas do rap: um olhar sobre o movimento das rodas culturais e a questão de gênero nas batalhas de rima e slams de poesia no Rio de Janeiro. Intercom, Curitiba, 2017, pp. 01 a 15;
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.