Por Theia Produtores Associados em 28/nov/2019
Pensar sobre a arte feita e exibida nas ruas é o mesmo que pensar sobre nossos hábitos interacionais nos lugares públicos. Principalmente, nos hábitos estabelecidos a partir das metrópoles ocidentais que viram suas populações crescerem e os usos e consumos nestes ambientes se transformarem. Não raro, personagens e histórias contadas por memorialistas passam a fazer parte do imaginário de contemplação das cidades, tais como as crônicas de João do Rio que, entre outros temas, abordou os “músicos ambulantes” no Rio de Janeiro da década de 1890. Entre encontros e percepções, interessa-nos, portanto, trazer à tona os sentidos das ações musicais e experimentações sonoras, onde as trocas relacionais envolvem todo o caos polifônico em torno do instrumentista e/ou cantor que se desafia diante de contextos em trânsito.
Podemos dizer inicialmente que, há séculos, diversas culturas musicais são geradas e alimentadas nas ruas e demais territórios coletivos no mundo todo. A atualidade deste amplo fenômeno social-artístico põe em movimento a nossa pesquisa contínua intitulada O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares. Para nós, os labirintos de pontes, calçadas, avenidas, praças, becos, parques, feiras, mercados, estações de metrô/trem/ônibus são entendidos como espaços populares por serem onde as pessoas se aglomeram e tornam corriqueiras grande quantidade de práticas e costumes. Em variados desenhos urbanos e com diferentes objetivos, as ruas estabelecem regras, também, para a presença da música como manifestação da coletividade ou como solução popular da vida em sociedade.
A ideia de observar, fotografar, gravar e dialogar com músicos/cantores das ruas, investigando suas lógicas de atuação, nasceu da percepção de que o artista é um sujeito que propõe o espaço-tempo da sua obra e, dessa forma, reinventa circunstâncias comunitárias de vivência. Nesse sentido, esta pesquisa nasceu durante o nosso caminhar por grandes e pequenos cenários urbanos dentro e fora do Brasil. Como um diapasão entre nossas memórias afetivas e os encontros ocasionais com músicos, este projeto ganhou a fluidez que dissolve as fronteira entre campo de pesquisa e campo da vida. Em tantos percursos, nossa curiosidade e envolvimento cotidiano miraram um objeto de estudo e instigaram a criação de textos e vídeos autorais. A verdade é que ter as cidades e seus espaços populares como laboratório/palco exige uma série de procedimentos que estão sempre em redefinição, sempre abertos às normas maleáveis das sociabilidades interacionais.
Enquanto pesquisa social, nossa ação adota o caráter empírico de aproximação com os artistas para conversas e entrevistas que objetivam entender suas atividades musicais como práticas que ensejam uma profissionalização nas ruas. Por isso mesmo, uma das questões abordadas é o contato com os transeuntes para obter contribuições espontâneas em dinheiro recolhido em caixas ou chapéus. Estamos nos referimos, portanto, a uma organização convencional e colaborativa de exibição e fruição que reconhece que a música também está presente nos espaços abertos e de forma independente. Mesmo excluídos do mercado da música, os músicos acolhidos pelas ruas absorvem e reproduzem tradições harmônicas e rítmicas que fazem suas práticas serem identificadas socialmente e acessadas sem barreiras ou empecilhos pré-definidos (apesar da comum repressão da “ordem pública” e do preconceito disseminado, por exemplo, no Brasil).
Nos dias em que somos atentos andarilhos, todas as vias sensitivas estão aguçadas e a nossa escuta, sintonizada na música que emerge do burburinho, está atrelada ao olhar e à performance. Colocamos em processo, também, o olhar da câmera ora estática, ora móvel e que tem seu próprio discurso. Assim, estamos em deslocamentos físicos e perceptivos que podem ter a brevidade dos encontros mais fortuitos ou a generosidade do bate-papo mais longo. Ou seja, a rítmica envolvida na situação estética não é apenas melódica, mas é, também, dos corpos, dos gestos, das falas, dos ruídos, das pausas e das despedidas. Nos vários sentidos do ato de se deslocar, o artista tem a coragem de induzir partilhas sensíveis imprevisíveis e abertas às corporeidades e arquiteturas circundantes. Neste acontecimento é que reside a potência político-artística dos músicos/cantores/poetas que fazem da interação o meio fundamental de reconhecimento do seu trabalho, da expressividade e da transmissão do saber musical, além da venda de cds gravados com custos próprios e da divulgação em redes sociais na Internet.
Contudo, a resistência neste ofício não garante que tais artistas sejam respeitados pelo senso comum ou que consigam se sustentar exclusivamente em seus “palcos” citadinos. Para além da qualidade técnica e das definições do “bom” ou “mau” gosto, entendemos que as histórias de vida apresentadas por nossos personagens revelam suas escolhas, motivações e dificuldades para o enfrentamento de uma rotina cheia de incertezas, mas sempre dedicada à música como um “chamado” irrecusável. Estas narrativas atravessam variadas paisagens sociais, fundamentam o modus operandi dos músicos e dão significados, criados por eles próprios, às performances instrumentais, à sobrevivência e às formas de (des)valorização dentro da lógica de apresentação nos espaços populares.
Por fim, de tanto falar em sítios e traslados, vale ressaltar que o presente veículo de comunicação do nosso conteúdo vai além de um mapeamento de artistas e localidades, ele entrecruza linguagens e está em constante construção. Convidamos, então, o público interessado em acompanhar nossas incursões a se desprender de concepções pré-formuladas e a se deixar levar pelo vai e vem de tantos referenciais transitórios.
Boas leituras:
ACHUGAR, Hugo. Culpas e memórias nas modernidades locais: divagações a respeito de “o flâneur” de Walter Benjamin. In: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Orgs). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
BECKER, Howard S. Uma carreira como sociólogo da música. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 3, n. 1, jan. – jun. 2013, pp. 131 – 141.
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.