Música Ambiental e Ecologia Humana


Por Theia Produtores Associados em 13/dez/2019

Ao longo de uma pesquisa de campo que se dá na transição entre espaços e narrativas de vida, o objeto de estudo, previamente definido, vai se expandindo conceitualmente e evidenciando suas variações a partir dos contextos sociais de realização. Considerando que, a princípio, nosso foco investigativo são os(as) artistas da música que percorrem os espaços populares como prática profissional e fonte de renda, podemos dizer que, na ação “Música Ambiental e Ecologia Humana”, os músicos compositores Roberto Possidio e Tainahakã Alves exercem uma diferente lógica de experimentação da música em um território coletivo que, no caso, trata-se de uma praça na cidade de Petrolina (PE).

Na noite do dia 18 de outubro de 2019, registramos mais um dia de atividade do referido projeto cultural, no bairro Maria Auxiliadora, em frente ao Bar Nós Dois que apoia a ação dos músicos e, dessa forma, garante uma atração artística para seus clientes. Sobre o ambiente urbano visitado, podemos dizer que, após manhãs e tardes de intenso calor, Petrolina é tomada, nesse período, por noites de temperatura mais amena e brisa um pouco mais refrescante. Essa tênue mudança, em uma sexta-feira, atrai um público interessado em encontros, interações, papos, cerveja e, também, em música ao vivo. Aos poucos, vamos percebendo que se trata de experienciar o convívio já estabelecido na referida área, onde as mesas e cadeiras do bar vão invadindo a pracinha e desenvolvendo uma plateia para o evento que ainda está sendo montado com equipamentos de som e instrumentos testados e afinados abaixo de uma das árvores que serve de abrigo e cenário. Os dois compositores se preparam para tocar violão, cantar e serem acompanhados por Cleybson Bolão (Cleybson Barros de Souza) na percussão.

Como forma introjetada de viver e pertencer à cidade, a ideia de apresentar músicas autorais e de outros compositores, locais ou não, surgiu pela identificação que tais artistas tiveram com a situação despretensiosa de boemia que a praça ocupada revelou. Nesse sentido, a musicalidade que atravessa o cotidiano dos nossos entrevistados leva à observação da naturalidade com que as circunstância artísticas são engendradas em coletividade.

Entre processo de educação musical e práticas de exibição da própria obra, os significados que o músico atribui à sua história e às suas escolhas são fundamentais para entendermos a normatização e, também, a transformação dos usos sociais propostos. Iniciando pelo diálogo que estabelecemos com Tainahakã Alves (34 anos), a sua abertura para referências culturais está associada à geografia da região do Sertão do São Francisco. O artista se define “natural de Petrolina e Juazeiro, (…), porque é difícil a gente ser de uma das duas só. Mas, nasci em Petrolina e convivo com essa coisa PEBA – Pernambuco e Bahia – e me sinto um pouco de cada um”. Trabalhando nas duas cidades, Tainahakã divide a atuação como músico (compositor, cantor e DJ) com a de editor de vídeos. Por essa trilha, a arte tem lugar privilegiado em sua formação profissional passando por diferentes cidades. Iniciou sua educação musical pelo estudo do violão nylon e da guitarra, principalmente, para acompanhar o sua voz ao cantar. Em pouco tempo, percebeu a necessidade de uma formação escolarizada após um começo como autodidata: “eu vi que a gente aprende mais rápido a partir de outras pessoas, buscando o conhecimento com outras pessoas. Aí, fui fazer aula de canto, busquei um professor de violão. Fui pra UFBA, em Salvador, estudar canto. Depois, eu fui pra Recife, entrei no Conservatório [Pernambucano] de Música no curso de Composição Técnica. Fui buscando sempre aprimorar baseado no conhecer de outras pessoas”.

O conhecimento voltado para a execução técnica do instrumento e composição passa a ser complementado pela vivência dos circuitos musicais de maneira independente. Entre as convenções da produção de shows, concertos etc., e as imprevisibilidades dos espaços públicos, Tainahakã identifica um pertencimento que flui entre as duas esferas de ação – “Então, eu acredito que, assim… todo músico é da rua, ele precisa ser da rua, ele precisa estar em contato com as pessoas e…ora a gente está em palcos mais estruturados e tal, com som mais bacana, ora a gente tá, assim, na praça. Eu não sei…eu me sinto bem fazendo música. Eu sou um cara que gosta da música no dia-dia, sabe? De ir para a casa do amigo tocar; – ‘Ah, vamo (sic) fazer um som na praça?’ – ‘Bora’. Mas, também, tenho o meu trabalho. Desenvolvo um trabalho de criação musical, mantenho atualizado um canal no YouTube com videoclipes, singles e, também, faço uma produção atrás de shows maiores com estrutura mais equipada”. Por este viés, podemos entender que a intenção de se apresentar tão próximo ao público, como em uma praça, não está ligada à necessidade de sobrevivência, ganhar dinheiro, mas de se testar enquanto artista que busca o aprimoramento nas distintas práticas de mercado e sem esquecer das atuais redes sociais como meios de divulgação.

O artista, portanto, coloca-se na transição entre tocar/criar no cotidiano mais prosaico, mais intimista, e se expor nas diferentes configurações de contato com o público. Ao comparar o ato de se apresentar em um show tecnicamente mais complexo e o ato independente de tocar com amigos nos espaços coletivos, Tainahakã evidencia o compromisso diante de um mercado e de uma cadeia produtiva ligada à arte e ao entretenimento, no primeiro caso, e a vivência despreocupada com resultados e retornos financeiros na segunda situação: “Talvez o evento mais estruturado tenha uma responsabilidade porque envolve muitas pessoas que estão trabalhando naquilo e cria uma expectativa, também, maior – o som grande, as luzes, a banda precisa de mais tempo. É todo um investimento, preparação dos músicos e escolher repertório. Talvez, um momento como esse, a rua [aponta para a praça], assim, uma coisa mais despretensiosa… particularmente, eu gosto muito…dessa coisa da jam session, do jazz, de você improvisar, eu gosto disso. A rua tem isso, essa despretensão da apresentação”. Essa despreocupação expressada no território da ação aberta ao contato com as pessoas tem a ver com o surgimento do próprio projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana” que vamos conhecer um pouco melhor.

Esse projeto surgiu com a ideia de ocupar a praça, mas logo a gente percebeu que precisava conseguir uma licitação da Prefeitura (…), aí, a gente pensou em um…em alguma ideia que pudesse vir por trás pra unir isso que a gente  está fazendo aqui, né? Por trás ou pela frente [risos], mas uma ideia que pudesse formalizar tudo isso e a gente poder apresentar um projeto na Prefeitura”. A estratégia para obter autorização da Prefeitura de Petrolina – para ocupar um pequeno espaço na praça com instrumentos, caixas de som, cabos, mesa de som, microfones – foi uma necessidade imposta após a primeira apresentação ter sido interrompida por policiais que circulavam no local. Diante dessa ordem de controle do uso do lugar comum a todos, a ação espontânea teve que se tornar um “projeto” e, consequentemente, um conceito artístico para evitar maiores problemas. “E, aí, Roberto Possidio, que é engenheiro ambiental, teve a ideia de fazer o ‘Música Ambiental e Ecologia Humana’ que, tipo assim, não é um evento de meio ambiente, mas que, talvez, é também (sic). A galera faz ‘ah, música ambiental’, mas a música ambiental é uma música que compõe o ambiente, o ambiente urbano também”. Nesse sentido, a primeira parte do nome do projeto, entre outras interpretações, é uma referência às intervenções sonoras que fazem parte da rua, onde sobreposições de ruídos e musicalidades estão presentes e em movimento.

Dando continuidade, Tainahakã afirma: “Aqui tem árvores, tem pessoas. Mas, quando a gente fala em ‘Ecologia Humana’, isso é o que tá dentro da gente também, é essa higiene mental, né? E que a música ajuda tanto as pessoas, também, a… sentir. A música ajuda a gente a sentir, eu acho. E eu curti bastante porque me dá espaço para mostrar o meu trabalho autoral também. Não só minhas músicas, mas músicas de compositores amigos, também, que são músicas novas e inéditas que eu escolhi para cantar. E, aqui, eu tenho esse espaço e isso me fez vir”. Mais uma vez, o músico expõe a complementaridade entre os universos particular/subjetivo e exterior/compartilhado em uma circunstância em que a mencionada “despretensão da rua” precisou agregar um tipo de formalização em projeto apresentado à Prefeitura, mas sem perder a sensação de tocar sem grandes cobranças. Isso resulta em alternativa para testar a reação das pessoas diante das composições próprias e do circuito de amigos/artistas com os quais convive.

Quando perguntado sobre as interações nos espaços populares, onde a relação com o dinheiro/consumo não é imperativa, Tainahakã reforça sua percepção sobre o sentimento de “liberdade”: “Sim, total, porque é um palco aberto, a rua. Sempre vai ter pessoas na rua, alguém pra te ver e tudo. Eu gosto de sair do lugar de conforto, também, né? De estar em um polco em que você é o foco da atenção. Na rua, a gente precisa buscar a atenção das pessoas de uma forma, até, diferente talvez. É difícil explicar, mas eu acho importante também porque pega as pessoas de surpresa, né? Você tá passando aqui, de repente, vê o cara e gosta. Então, é um meio democrático…por enquanto. Eu sei que tem vários países que é proibido. Você não pode chegar em qualquer lugar e começar a tocar o violão…não é assim. Aqui, no Brasil mesmo, tem casos, gente que tá tocando no metrô aqui, acolá e, na própria praça, é reprimido por isso. Mas, ainda é uma forma democrática de você, talvez, mostrar seu trabalho para um público (…), tem sempre um público disposto a absorver aquela coisa”. Dessa forma, o projeto executado na praça se torna uma prática de formação de público tanto para a produção autoral dos artistas envolvidos, quanto para a própria circunstância de vivência musical no território público, gerando uma prática que alimenta e cativa o interesse pela arte nas ruas.

Tais percepções se fizeram presentes, também, na entrevista que realizamos com Roberto Possidio (54 anos), idealizador da ação. Possidio é engenheiro agrônomo e trabalha com consultoria ambiental, o que indica que a música não é sua única fonte de renda. Brevemente, ele nos contou que o seu encontro pessoal com a música se deu como forma de socialização na infância e adolescência e que, depois, passou a adentrar contextos mais próximos da profissionalização: “Eu comecei a tocar violão com oito anos de idade. Com doze anos, já tocava nas festinhas da escola (…). Comecei a tocar à noite com vinte e poucos anos de idade com uma amiga que, hoje, é da televisão e do rádio. Numa época, a gente começou a tocar juntos, eu acompanhava ela. Depois, eu comecei a cantar também. Aí, fui morar em Salvador, depois passei dezenove anos em Salvador, voltei pra cá oito anos e tocando também. E, agora, principalmente, tocando, que é o que eu gosto mais de fazer”.

A noção de socialização por meio da música permanece na narrativa de Possidio ao explicar o surgimento do projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana”: “Então, a gente começou a frequentar essa praça onde vêm os amigos, principalmente, no final da noite. É um lugar legal, um lugar bacana, arborizado, um pessoal legal que aparece aqui. A gente teve a ideia de fazer um som. A primeira vez, a gente trouxe o equipamento e botou aí na praça, falou com João [dono do bar Nós Dois], ele ‘tudo bem’ e tal. Tocamos no tempo que deu, a polícia chegou e pediu para parar e a gente tocou mais um tempo e tal. Mas foi tranquilo. Então, a gente resolveu fazer um projeto que abrange a questão ambiental também, que é minha área, e a gente convocou alguns amigos que trabalham com isso, né? (…), a gente tenta passar essa ideia da necessidade de preservação, não só. Mas as questões de interrelações humanas, né? Por isso que o nosso projeto é ‘Música Ambiental e Ecologia Humana’. Porque a gente tenta sempre lembrar dessas relações de consumo, os limites do planeta e por aí vai. E a música permeando tudo isso”. Em tal depoimento, ouvimos pela primeira vez, em Petrolina, o tema das imposições da Ordem Pública, a partir da ação policial, ser mencionado de forma espontânea por um músico que atua em uma situação artística na rua. Neste caso, fica evidente que se tratou de uma abordagem controlada por parte dos agentes policiais que, como indicado pelos entrevistados, não criminalizaram a prática musical, apesar de exigirem a interrupção. O episódio faz com que a ação coletiva espontânea, marcada pela amizade e interesse pela música, torne-se um projeto com conceito que possa ser defendido diante da administração municipal, como narrado anteriormente por Tainahakã. Dessa forma, uma realização que parecia sem objetivação definida teve que tomar o corpo de um projeto de arte e de concepção, também, conscientizadora. Por este viés, a busca por um bom convívio com a Ordem municipal só é possível mediante a prévia compreensão que os artistas tiveram das regras regulamentadoras do direito de ocupar uma praça da cidade com arte. O que se tornou possível, também, por meio da formação acadêmica dos músicos/produtores e do arcabouço de conhecimento estruturador dos argumentos que justificam o projeto e o legitimam como experiência comunitária local. Na fala de Possidio acima exposta, a música, que era a motivação principal, atua “permeando tudo isso”. Não entenderemos, necessariamente, como uma descaracterização da ideia inicial, mas, sim, como um desdobramento a partir de implicações vindas de um poder externo à arte.

Diante deste caso, podemos considerar que as interações e compartilhamentos da situação estética, nos espaços populares, podem ser diretamente influenciadas por controles sociais que direcionam as negociações entre agentes/atores socias e, até mesmo, as formas de fruição: como as pessoas podem ser acomodadas em uma praça? O uso de equipamento de som é permitido? Qual o volume adequado? Entre outras questões regulamentares. O que se torna imperativo compreender, nesse contexto específico, é que a vivência da prática artística como prática coletiva, para nossos entrevistados, depende do perfeito entendimento, por parte deles, sobre as normas de legalidade, participação e legitimação.

Após tais considerações acerca do surgimento do projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana”, é necessário enfatizar que a experimentação estética na rua é a temática que ganha maior profundidade em nossa entrevista na pesquisa de campo. Quando questionado sobre tantas polifonias urbanas e os desafios de executar música na rua, Possidio responde que “Realmente, é um processo de desprendimento de uma coisa que é fundamental para o músico que é o silêncio. Para você executar, o silêncio é uma coisa fundamental. E a gente tem que lidar com isso, né? A interrelação urbana. A gente tem que assimilar isso, também, e tolerar, até certo ponto, e fazer com que isso seja absorvido e vá normalmente dentro do som e vai fluindo tudo”. O compartilhamento estético é vivido, portanto, em suas descobertas e integrações cotidianas. Brevemente, o tema das contribuições, em dinheiro, que os artistas podem receber das pessoas que frequentam as mesas do bar aparece na descrição da parceria mantida com João, dono do estabelecimento, que assumiu o papel de recolher as colaborações dos clientes, no clássico ato de “passar o chapéu”. Dessa forma, a edição do projeto vai se desenvolvendo em meio à simplicidade das relações de amizade e companheirismo.

Abaixo de uma das árvores, está montada uma mesa de som ligada, por cabos, a alguns equipamentos, como: a caixa de som, apoiada em um tripé, virada para o público; caixa de retorno para os músicos; outra caixa de som, no chão, voltada, também, para o público e três microfones apoiados em pedestais. Ou seja, monta-se, rapidamente, a estrutura para uma apresentação intimista que acompanha dois violões e instrumentos percussivos. Tainahakã começa as atividades tocando e cantando uma música autoral, “Tá bonito pra chover”, acompanhado por Cleybson Bolão na percussão. Ao redor dos dois músicos, o movimento urbano (carros, motos e pessoas) não é tão intenso como pela manhã e as composições apresentadas revelam um “contato” estético com o Reggae, evidenciando-se o violão bem dedilhado, ou com o “lado B da música brasileira”, como o artista comunica ao seu público. Após algumas canções, Possidio chega ao “palco” para cantar e tocar violão em plena sintonia com a proposta musical iniciada, há alguns minutos, pelo amigo.

Ao final de cada música, o público aplaude. O que diferencia, mais uma vez, a lógica de funcionamento do “Música Ambiental e Ecologia Humana” em comparação às demais interações entre artistas e transeuntes que marcam a nossa pesquisa. De forma geral, a ação se localiza dentro de um universo maior de práticas individuais em que nossos entrevistados não querem deixar a música fora de seus afazeres diários, sempre engendrando soluções entre a subjetividade e a profissionalização ou entre a intimidade dos afetos e a invenção dos “palcos” nas ruas.

Roberto Possidio – Foto por Laura Sousa

Boa leitura:

BECKER, Howard S. “Mundos da Arte e Actividades Colectivas”. In: Mundos da Arte. Portugal: Livros Horizonte, 2010.


Incentivo