Por Theia Produtores Associados em 26/abr/2021
Nossa passagem pela cidade de Caruaru (PE) também foi marcada pelos encontros com artistas da música que fazem dos espaços populares seus territórios de experimentação para composições autorais e para interessantes propostas de interação com transeuntes. Abrindo essas possibilidades de observação e vivência, na tarde do dia 13 de novembro de 2019, pudemos conhecer a atuação do músico Olegário Lucena que, na calçada da avenida Oswaldo Cruz, executou seu processo criativo relacionando improviso e performance em um instigante entrelaçamento entre Rock, uma pegada de Blues e algumas referências regionais.
Nascido em Taquaritinga do Norte, também no Agreste pernambucano, Olegário está há, mais ou menos, quinze anos envolvido em distintos circuitos de bandas e festivais independentes do Estado. Possui história de vida e relações fortes em Caruaru e, também, em Santa Cruz do Capibaribe, cidades onde o aprendizado da música e as amizades, ao lado da transformação de produção por meio da Internet, foram indicando caminhos e oportunidades para inserções no mundo da arte.
Já mencionamos, em textos anteriores, o quanto os músicos das ruas precisam tecer uma rede de apoio e de colaboradores para ocupar os espaços urbanos com seus trabalhos. Os acordos com comerciantes do entorno, por exemplo, são fundamentais para obter o mínimo de estrutura e manter uma boa convivência. No caso específico de Olegário, a relação de camaradagem com o dono da loja Nova Music, de instrumentos e equipamentos musicais, garante o acesso à fonte de energia onde o artista pode ligar todo o seu aparato rapidamente organizado, por ele mesmo, na calçada em frente à galeria comercial.
No referido cenário, são distribuídos cabos, instrumentos, caixa de som, pedais e o case da guitarra que fica aberto para receber as eventuais colaborações em dinheiro. Toda a movimentação de autoprodução é muito intensa e dá uma prévia da atitude musical de Olegário nesse trabalho solo.
Sem esperar muito para começar a tirar um som, o músico desenvolve bases melódicas com a guitarra e utiliza o loop station como ferramenta de ampliação de suas possibilidades. A partir daí, sua improvisação vai ganhando força ao lado de sua postura corporal que revela todo o seu envolvimento com a ação e com os passantes. Dentro desse constante jogo de criação, os pedais vão sendo acionados para ativar efeitos e o estabelecimento de novas bases para o improviso. Não demora muito, algumas pessoas começam a registrar a apresentação com câmeras de celulares.
Em uma atuação, inicialmente, apenas instrumental, Olegário Lucena se distancia da comum prática dos repertórios pré-formulados e repletos de canções que atingem uma relação afetiva e mercadológica com o público. Em um caminho contrário, busca improvisar e experimentar com versatilidade e se torna evidente o quanto ele se diverte e compartilha esse sentimento enquanto toca.
A energia que um artista pode trocar com seus espectadores marca nossa memória e essa é uma experiência que nosso entrevistado traz em sua prática e em sua narrativa. Quando nos conta sobre o seu início no circuito musical local, Olegário cita o quanto festivais e bandas que teve a oportunidade de frequentar e ver de perto impulsionaram suas escolhas estéticas:
“Comecei com bandas da cidade, com meus vizinhos, com meus primos. Depois, eu vim estudar aqui em Caruaru. Mas, assim, o que me motivou muito, nas primeiras vontades, é que por mais que você conheça artistas pela televisão e Internet, aqueles que você vê pertinho são os que realmente fazem a vontade surgir. E foi lá em Santa Cruz [do Capibaribe – PE], vendo os meus vizinhos, vendo o festival Capibaribe in Rock que Beto Skin promove, vendo o pessoal aqui de Caruaru que já fazia parte da cena Rock and Roll, Jonathan Richard e outros como, estudei com ele, Petrus Felipe que é professor aqui ainda. E a gente vai pegando um pouquinho de cada um”.
Refletindo sobre sua formação e influências do fazer musical, Olegário reconhece a importância da sua forma de transitar entre as ruas e os palcos convencionais em que acompanha outros artistas:
“Nesse trabalho de rua que, atualmente, eu venho desenvolvendo, também, de uma maneira paralela porque eu acompanho outros artistas como Agda, lá de Santa Cruz, que está na estrada. […]. Aí, tem trabalho em Garanhuns, às vezes, com Alexandre Revoredo, a gente toca por lá. Com Nino Alves que é percussionista, recentemente a gente participou do Canavial Instrumental que foi na cidade de Upatininga (PE). Foi numa igreja e foi meu primeiro show instrumental e fiquei maravilhado porque a plateia era muito atenta, silenciosa, muito massa. E, entre eles também, ando por aqui no São João”.
O que se descreve, acima, é um percurso entre diferentes contextos e estruturações sociais da prática musical que nos ajuda a questionar a concepção preconceituosa, muito difundida pelo senso comum e até mesmo entre agentes do mercado cultural, de que o músico dos espaços populares não tem outra opção de trabalho ou que esteja frustrado em sua informalidade. Olegário Lucena nos esclarece como as ruas podem ser escolhidas a partir de uma necessidade de expressão e de ampliação de oportunidades de buscar a potência musical em si:
“Nesse projeto de rua, a gente se depara, também, com o comércio amigo que dá uma força, como foi aqui com a casa Nova Music que dá uma energia, dá uma estratégia amais para você se desdobrar na rua. Porque a rua não tem energia, você tem que chegar preparado. Então, são vários fatores que culminam nesse final. Não é tão de sucesso, de glamour, mas eu me satisfaço muito bem assim”.
O artista apresenta, portanto, um arcabouço de realizações que o ajuda a idealizar a transformação da calçada pública em uma área de fruição e visibilidade, exercendo uma troca com o lojista amigo que tem, também, seu estabelecimento divulgado. Rodeado por seu aparato técnico montado no chão, Olegário aciona relações interpessoais e os desdobramentos entre referências regionais da música popular e outros segmentos, como o Rock e uma aproximação com o Blues, que encontram a aceitação entre o público e os realizadores locais. Narrando sobre o seu “ir e vir” entre parcerias, Olegário mencionou a seu início profissional, também, com o forró: “A gente sempre começa com o forró, né? Na região, aqui, é uma coisa muito natural pender pro forró e, daqui a pouco, abrir para as outras coisas”.
Esse referencial atravessa, rapidamente, sua apresentação no momento em que ele improvisa a partir da canção “Asa Branca”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, e que momentaneamente ganha uma pegada Rock que a coloca em diálogo com toda a dinâmica que se desenrola diante de nossa câmera. De repente, o artista começa a recitar versos para as pessoas que passam a sua frente e traz mais um elemento para ativar trocas de olhares, sorrisos e ganhar a simpatia expressa nas cédulas e moedas depositadas no case.
Toda a movimentação se transforma, mais uma vez, no instante em que substitui a guitarra por uma escaleta e dá continuidade à fluidez de criação sempre recorrendo ao loop station. Para finalizar, liga um microfone e brinca com versos e rimas com nomes de mulheres, simula as vozes das suas personagens e leva a sua performance a um novo tom, com particular dose de humor e ação cênica/interpretativa.
Voltando a tratar das transições entre palcos convencionais e os espaços públicos, Olegário entendeu o potencial de retorno financeiro da música nas ruas em uma situação em que precisou agir com criatividade para sanar um prejuízo. A necessidade de conseguir dinheiro o fez dar um novo significado aos espaços públicos que ele já enfrentava como um provocador de experimentos sonoros:
“Bicho, a ficha caiu quando eu estava no Festival de Inverno [de Garanhuns – PE] e eu tinha fechado três noites, mas bati o carro. Tive que pagar uma nota, tive que me desdobrar. Eu já estava liso, o dinheiro da noite pagava os músicos. Aí, eu tive que tocar na rua. Eu estava liso e disse: ‘toco na rua mesmo’. Porque eu já tocava sem a necessidade de abrir o case pra ganhar dinheiro. A gente já tocava em palco, em barzinho, e eu tocava na rua por diversão. Mas, agora, rua é um trabalho também. Uma coisa que entra no orçamento autossustentável da coisa. Porque a gente sabe que o mundo musical é caro, instrumento é caro, tudo é caro, principalmente no Brasil. Aí, tem que tirar de todo canto que der. Além do sentimento artístico pra não falar só em dinheiro”.
Com naturalidade, o tipo de performance por ele adotada, como a registramos e exibimos em vídeo, vai sendo engendrada no espaço-tempo em que o artista partilha suas imprevisíveis manifestações. Assim, Olegário nos explica que:
“Ela está em construção. O que vem na cabeça, o repertório de coisa que eu já conheço, eu boto, tentando seguir uma linha que não seja grotesca de uma música para outra. Mas é natural; o que eu penso, eu faço, e boto na hora. Tem premeditação não e o que eu fiz ontem não é igual ao de hoje e amanhã, também, não vai ser igual. É sempre uma experiência nova”.
De modo geral, estar na rua é, sobretudo, ter a coragem de enfrenta-la, superar uma série de receios e criar um novo sistema de referências para o ato de conviver e de disputar suas áreas de ocupação. Este é um desafio que Olegário Lucena descreve a partir de objetivos experimentais, verdadeira investigação sobre sua própria prática musical:
“Eu sinto isso, a rua é um laboratório de pesquisa pra, […], saber até a aceitação do seu som. Talvez seja um dos maiores palcos; talvez não, é. O maior palco que tem é a rua”.
Com este olhar, o artista segue despertando processos de uma partilha criativa em que as interações são atiçadas e os estímulos sensíveis reavivados cotidianamente.
Boas Leituras:
BENITZ, André de Noronha D. “Indo além do Blues: guitarra e música eletrônica”. UFRS, 2018.
DE LEMOS, Daniela B. “As jam sassions de Blues em Porto Alegre: rituais de interação, sociabilidade e seus códigos”. UFRS, 2019.
PAIXÃO, João Jorge dos A. “Ensino da improvisação nas aulas de guitarra na perspectiva dos alunos”. Brasília: UnB, 2016.