Música Ambiental e Ecologia Humana
Ao longo de uma pesquisa de campo que se dá na transição entre espaços e narrativas de vida, o objeto de estudo, previamente definido, vai se expandindo conceitualmente e evidenciando suas variações a partir dos contextos sociais de realização. Considerando que, a princípio, nosso foco investigativo são os(as) artistas da música que percorrem os espaços populares como prática profissional e fonte de renda, podemos dizer que, na ação “Música Ambiental e Ecologia Humana”, os músicos compositores Roberto Possidio e Tainahakã Alves exercem uma diferente lógica de experimentação da música em um território coletivo que, no caso, trata-se de uma praça na cidade de Petrolina (PE).
https://youtu.be/IIUDViuB1kc
Na noite do dia 18 de outubro de 2019, registramos
mais um dia de atividade do referido projeto cultural, no bairro Maria
Auxiliadora, em frente ao Bar Nós Dois que apoia a ação dos músicos e, dessa
forma, garante uma atração artística para seus clientes. Sobre o ambiente
urbano visitado, podemos dizer que, após manhãs e tardes de intenso calor,
Petrolina é tomada, nesse período, por noites de temperatura mais amena e brisa
um pouco mais refrescante. Essa tênue mudança, em uma sexta-feira, atrai um
público interessado em encontros, interações, papos, cerveja e, também, em
música ao vivo. Aos poucos, vamos percebendo que se trata de experienciar o
convívio já estabelecido na referida área, onde as mesas e cadeiras do bar vão
invadindo a pracinha e desenvolvendo uma plateia para o evento que ainda está
sendo montado com equipamentos de som e instrumentos testados e afinados abaixo
de uma das árvores que serve de abrigo e cenário. Os dois compositores se
preparam para tocar violão, cantar e serem acompanhados por Cleybson Bolão
(Cleybson Barros de Souza) na percussão.
Como forma introjetada de viver e
pertencer à cidade, a ideia de apresentar músicas autorais e de outros compositores,
locais ou não, surgiu pela identificação que tais artistas tiveram com a
situação despretensiosa de boemia que a praça ocupada revelou. Nesse sentido, a
musicalidade que atravessa o cotidiano dos nossos entrevistados leva à
observação da naturalidade com que as circunstância artísticas são engendradas
em coletividade.
Entre processo de educação musical e
práticas de exibição da própria obra, os significados que o músico atribui à
sua história e às suas escolhas são fundamentais para entendermos a normatização
e, também, a transformação dos usos sociais propostos. Iniciando pelo diálogo
que estabelecemos com Tainahakã Alves (34 anos), a sua abertura para
referências culturais está associada à geografia da região do Sertão do São
Francisco. O artista se define “natural de Petrolina e Juazeiro, (...),
porque é difícil a gente ser de uma das duas só. Mas, nasci em Petrolina e
convivo com essa coisa PEBA – Pernambuco e Bahia – e me sinto um pouco de cada
um”. Trabalhando nas duas cidades, Tainahakã divide a atuação como músico
(compositor, cantor e DJ) com a de editor de vídeos. Por essa trilha, a arte
tem lugar privilegiado em sua formação profissional passando por diferentes
cidades. Iniciou sua educação musical pelo estudo do violão nylon e da
guitarra, principalmente, para acompanhar o sua voz ao cantar. Em pouco tempo,
percebeu a necessidade de uma formação escolarizada após um começo como
autodidata: “eu vi que a gente aprende mais rápido a partir de outras
pessoas, buscando o conhecimento com outras pessoas. Aí, fui fazer aula de
canto, busquei um professor de violão. Fui pra UFBA, em Salvador, estudar
canto. Depois, eu fui pra Recife, entrei no Conservatório [Pernambucano]
de Música no curso de Composição Técnica. Fui buscando sempre aprimorar baseado
no conhecer de outras pessoas”.
O conhecimento voltado para a execução
técnica do instrumento e composição passa a ser complementado pela vivência dos
circuitos musicais de maneira independente. Entre as convenções da produção de
shows, concertos etc., e as imprevisibilidades dos espaços públicos, Tainahakã
identifica um pertencimento que flui entre as duas esferas de ação – “Então,
eu acredito que, assim... todo músico é da rua, ele precisa ser da rua, ele
precisa estar em contato com as pessoas e...ora a gente está em palcos mais
estruturados e tal, com som mais bacana, ora a gente tá, assim, na praça. Eu
não sei...eu me sinto bem fazendo música. Eu sou um cara que gosta da música no
dia-dia, sabe? De ir para a casa do amigo tocar; - ‘Ah, vamo (sic) fazer
um som na praça?’ – ‘Bora’. Mas, também, tenho o meu trabalho. Desenvolvo um
trabalho de criação musical, mantenho atualizado um canal no YouTube com
videoclipes, singles e, também, faço uma produção atrás de shows maiores com
estrutura mais equipada”. Por este viés, podemos entender que a intenção de
se apresentar tão próximo ao público, como em uma praça, não está ligada à
necessidade de sobrevivência, ganhar dinheiro, mas de se testar enquanto
artista que busca o aprimoramento nas distintas práticas de mercado e sem
esquecer das atuais redes sociais como meios de divulgação.
O artista, portanto, coloca-se na
transição entre tocar/criar no cotidiano mais prosaico, mais intimista, e se
expor nas diferentes configurações de contato com o público. Ao comparar o ato
de se apresentar em um show tecnicamente mais complexo e o ato independente de
tocar com amigos nos espaços coletivos, Tainahakã evidencia o compromisso
diante de um mercado e de uma cadeia produtiva ligada à arte e ao
entretenimento, no primeiro caso, e a vivência despreocupada com resultados e
retornos financeiros na segunda situação: “Talvez o evento mais estruturado
tenha uma responsabilidade porque envolve muitas pessoas que estão trabalhando
naquilo e cria uma expectativa, também, maior – o som grande, as luzes, a banda
precisa de mais tempo. É todo um investimento, preparação dos músicos e
escolher repertório. Talvez, um momento como esse, a rua [aponta para a
praça], assim, uma coisa mais despretensiosa... particularmente, eu gosto
muito...dessa coisa da jam session, do jazz, de você improvisar, eu gosto
disso. A rua tem isso, essa despretensão da apresentação”. Essa
despreocupação expressada no território da ação aberta ao contato com as
pessoas tem a ver com o surgimento do próprio projeto “Música Ambiental e
Ecologia Humana” que vamos conhecer um pouco melhor.
“Esse projeto surgiu com a ideia de
ocupar a praça, mas logo a gente percebeu que precisava conseguir uma licitação
da Prefeitura (...), aí, a gente pensou em um...em alguma ideia que pudesse vir
por trás pra unir isso que a gente está
fazendo aqui, né? Por trás ou pela frente [risos], mas uma ideia que
pudesse formalizar tudo isso e a gente poder apresentar um projeto na
Prefeitura”. A estratégia para obter autorização da Prefeitura de Petrolina
– para ocupar um pequeno espaço na praça com instrumentos, caixas de som,
cabos, mesa de som, microfones – foi uma necessidade imposta após a primeira
apresentação ter sido interrompida por policiais que circulavam no local.
Diante dessa ordem de controle do uso do lugar comum a todos, a ação espontânea
teve que se tornar um “projeto” e, consequentemente, um conceito artístico para
evitar maiores problemas. “E, aí, Roberto Possidio, que é engenheiro
ambiental, teve a ideia de fazer o ‘Música Ambiental e Ecologia Humana’ que,
tipo assim, não é um evento de meio ambiente, mas que, talvez, é também
(sic). A galera faz ‘ah, música ambiental’, mas a música ambiental é uma
música que compõe o ambiente, o ambiente urbano também”. Nesse sentido, a
primeira parte do nome do projeto, entre outras interpretações, é uma
referência às intervenções sonoras que fazem parte da rua, onde sobreposições
de ruídos e musicalidades estão presentes e em movimento.
Dando continuidade, Tainahakã afirma: “Aqui
tem árvores, tem pessoas. Mas, quando a gente fala em ‘Ecologia Humana’, isso é
o que tá dentro da gente também, é essa higiene mental, né? E que a música
ajuda tanto as pessoas, também, a... sentir. A música ajuda a gente a sentir,
eu acho. E eu curti bastante porque me dá espaço para mostrar o meu trabalho
autoral também. Não só minhas músicas, mas músicas de compositores amigos,
também, que são músicas novas e inéditas que eu escolhi para cantar. E, aqui,
eu tenho esse espaço e isso me fez vir”. Mais uma vez, o músico expõe a
complementaridade entre os universos particular/subjetivo e exterior/compartilhado
em uma circunstância em que a mencionada “despretensão da rua” precisou agregar
um tipo de formalização em projeto apresentado à Prefeitura, mas sem perder a
sensação de tocar sem grandes cobranças. Isso resulta em alternativa para
testar a reação das pessoas diante das composições próprias e do circuito de
amigos/artistas com os quais convive.
Quando perguntado sobre as interações
nos espaços populares, onde a relação com o dinheiro/consumo não é imperativa,
Tainahakã reforça sua percepção sobre o sentimento de “liberdade”: “Sim,
total, porque é um palco aberto, a rua. Sempre vai ter pessoas na rua, alguém
pra te ver e tudo. Eu gosto de sair do lugar de conforto, também, né? De estar
em um polco em que você é o foco da atenção. Na rua, a gente precisa buscar a
atenção das pessoas de uma forma, até, diferente talvez. É difícil explicar,
mas eu acho importante também porque pega as pessoas de surpresa, né? Você tá
passando aqui, de repente, vê o cara e gosta. Então, é um meio
democrático...por enquanto. Eu sei que tem vários países que é proibido. Você
não pode chegar em qualquer lugar e começar a tocar o violão...não é assim.
Aqui, no Brasil mesmo, tem casos, gente que tá tocando no metrô aqui, acolá e,
na própria praça, é reprimido por isso. Mas, ainda é uma forma democrática de
você, talvez, mostrar seu trabalho para um público (...), tem sempre um público
disposto a absorver aquela coisa”. Dessa forma, o projeto executado na
praça se torna uma prática de formação de público tanto para a produção autoral
dos artistas envolvidos, quanto para a própria circunstância de vivência
musical no território público, gerando uma prática que alimenta e cativa o
interesse pela arte nas ruas.
Tais percepções se fizeram presentes,
também, na entrevista que realizamos com Roberto Possidio (54 anos),
idealizador da ação. Possidio é engenheiro agrônomo e trabalha com consultoria
ambiental, o que indica que a música não é sua única fonte de renda.
Brevemente, ele nos contou que o seu encontro pessoal com a música se deu como
forma de socialização na infância e adolescência e que, depois, passou a
adentrar contextos mais próximos da profissionalização: “Eu comecei a tocar
violão com oito anos de idade. Com doze anos, já tocava nas festinhas da escola
(...). Comecei a tocar à noite com vinte e poucos anos de idade com uma amiga
que, hoje, é da televisão e do rádio. Numa época, a gente começou a tocar
juntos, eu acompanhava ela. Depois, eu comecei a cantar também. Aí, fui morar
em Salvador, depois passei dezenove anos em Salvador, voltei pra cá oito anos e
tocando também. E, agora, principalmente, tocando, que é o que eu gosto mais de
fazer”.
A noção de socialização por meio da
música permanece na narrativa de Possidio ao explicar o surgimento do projeto
“Música Ambiental e Ecologia Humana”: “Então, a gente começou a frequentar
essa praça onde vêm os amigos, principalmente, no final da noite. É um lugar
legal, um lugar bacana, arborizado, um pessoal legal que aparece aqui. A gente
teve a ideia de fazer um som. A primeira vez, a gente trouxe o equipamento e
botou aí na praça, falou com João [dono do bar Nós Dois], ele ‘tudo bem’
e tal. Tocamos no tempo que deu, a polícia chegou e pediu para parar e a gente
tocou mais um tempo e tal. Mas foi tranquilo. Então, a gente resolveu fazer um
projeto que abrange a questão ambiental também, que é minha área, e a gente
convocou alguns amigos que trabalham com isso, né? (...), a gente tenta passar
essa ideia da necessidade de preservação, não só. Mas as questões de
interrelações humanas, né? Por isso que o nosso projeto é ‘Música Ambiental e
Ecologia Humana’. Porque a gente tenta sempre lembrar dessas relações de
consumo, os limites do planeta e por aí vai. E a música permeando tudo isso”.
Em tal depoimento, ouvimos pela primeira vez, em Petrolina, o tema das
imposições da Ordem Pública, a partir da ação policial, ser mencionado de forma
espontânea por um músico que atua em uma situação artística na rua. Neste caso,
fica evidente que se tratou de uma abordagem controlada por parte dos agentes
policiais que, como indicado pelos entrevistados, não criminalizaram a prática
musical, apesar de exigirem a interrupção. O episódio faz com que a ação
coletiva espontânea, marcada pela amizade e interesse pela música, torne-se um
projeto com conceito que possa ser defendido diante da administração municipal,
como narrado anteriormente por Tainahakã. Dessa forma, uma realização que
parecia sem objetivação definida teve que tomar o corpo de um projeto de arte e
de concepção, também, conscientizadora. Por este viés, a busca por um bom
convívio com a Ordem municipal só é possível mediante a prévia compreensão que
os artistas tiveram das regras regulamentadoras do direito de ocupar uma praça
da cidade com arte. O que se tornou possível, também, por meio da formação
acadêmica dos músicos/produtores e do arcabouço de conhecimento estruturador dos
argumentos que justificam o projeto e o legitimam como experiência comunitária
local. Na fala de Possidio acima exposta, a música, que era a motivação
principal, atua “permeando tudo isso”. Não entenderemos,
necessariamente, como uma descaracterização da ideia inicial, mas, sim, como um
desdobramento a partir de implicações vindas de um poder externo à arte.
Diante deste caso, podemos considerar
que as interações e compartilhamentos da situação estética, nos espaços
populares, podem ser diretamente influenciadas por controles sociais que
direcionam as negociações entre agentes/atores socias e, até mesmo, as formas
de fruição: como as pessoas podem ser acomodadas em uma praça? O uso de
equipamento de som é permitido? Qual o volume adequado? Entre outras questões
regulamentares. O que se torna imperativo compreender, nesse contexto
específico, é que a vivência da prática artística como prática coletiva, para
nossos entrevistados, depende do perfeito entendimento, por parte deles, sobre
as normas de legalidade, participação e legitimação.
Após tais considerações acerca do
surgimento do projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana”, é necessário
enfatizar que a experimentação estética na rua é a temática que ganha maior
profundidade em nossa entrevista na pesquisa de campo. Quando questionado sobre
tantas polifonias urbanas e os desafios de executar música na rua, Possidio
responde que “Realmente, é um processo de desprendimento de uma coisa que é
fundamental para o músico que é o silêncio. Para você executar, o silêncio é
uma coisa fundamental. E a gente tem que lidar com isso, né? A interrelação
urbana. A gente tem que assimilar isso, também, e tolerar, até certo ponto, e
fazer com que isso seja absorvido e vá normalmente dentro do som e vai fluindo
tudo”. O compartilhamento estético é vivido, portanto, em suas descobertas
e integrações cotidianas. Brevemente, o tema das contribuições, em dinheiro,
que os artistas podem receber das pessoas que frequentam as mesas do bar
aparece na descrição da parceria mantida com João, dono do estabelecimento, que
assumiu o papel de recolher as colaborações dos clientes, no clássico ato de
“passar o chapéu”. Dessa forma, a edição do projeto vai se desenvolvendo em
meio à simplicidade das relações de amizade e companheirismo.
Abaixo de uma das árvores, está montada
uma mesa de som ligada, por cabos, a alguns equipamentos, como: a caixa de som,
apoiada em um tripé, virada para o público; caixa de retorno para os músicos;
outra caixa de som, no chão, voltada, também, para o público e três microfones
apoiados em pedestais. Ou seja, monta-se, rapidamente, a estrutura para uma
apresentação intimista que acompanha dois violões e instrumentos percussivos.
Tainahakã começa as atividades tocando e cantando uma música autoral, “Tá
bonito pra chover”, acompanhado por Cleybson Bolão na percussão. Ao redor dos
dois músicos, o movimento urbano (carros, motos e pessoas) não é tão intenso
como pela manhã e as composições apresentadas revelam um “contato” estético com
o Reggae, evidenciando-se o violão bem dedilhado, ou com o “lado B da música
brasileira”, como o artista comunica ao seu público. Após algumas canções,
Possidio chega ao “palco” para cantar e tocar violão em plena sintonia com a
proposta musical iniciada, há alguns minutos, pelo amigo.
Ao final de cada música, o público
aplaude. O que diferencia, mais uma vez, a lógica de funcionamento do “Música
Ambiental e Ecologia Humana” em comparação às demais interações entre artistas
e transeuntes que marcam a nossa pesquisa. De forma geral, a ação se localiza
dentro de um universo maior de práticas individuais em que nossos entrevistados
não querem deixar a música fora de seus afazeres diários, sempre engendrando
soluções entre a subjetividade e a profissionalização ou entre a intimidade dos
afetos e a invenção dos “palcos” nas ruas.
Roberto Possidio - Foto por Laura Sousa
Boa leitura:
BECKER, Howard S. “Mundos da Arte e
Actividades Colectivas”. In: Mundos da Arte. Portugal: Livros Horizonte, 2010.