Vai no Teu Tempo


Por Theia Produtores Associados em 02/abr/2021

O grupo “Vai no Teu Tempo” começou a atuar nos espaços populares de Caruaru (PE) poucos meses antes da realização do nosso registro no dia 13 de novembro de 2019. O palco em que encontramos seus três integrantes foi a Feira de Caruaru que, com o passar dos anos, tornou-se um grande polo comercial cheio de corredores, lojas com as mais variadas mercadorias, lanchonetes, bares, restaurantes e muita representação da cultura popular local.

Tivemos, então, a oportunidade de conhecer Rafael Ferreira de Lima Silva, Maria Camila Ferrera Silva e José Carlos Alves Gomes que se apresentam, respectivamente, com os nomes artísticos Urbano Leafa, Maria Ferrera e Carlos dos Ventos. Neste encontro, a primeira canção que o grupo nos apresentou foi “Assum Preto”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, introduzida pelo pífano de Carlos dos Ventos que foi acompanhado pela pandeirola meia lua de Maria e pelo pandeiro de Urbano Leafa. A música, durante a dinâmica, tornou-se uma trilha sonora para a poesia autoral que Urbano começou a recitar performaticamente, aproximando-se um pouco mais da pequena cestinha colocada no chão para recolher colaborações em dinheiro.

Neste instante inicial, o grupo já revelou o hibridismo entre poesia, teatro de rua e música que caracteriza sua proposta nos espaços públicos. Em nosso campo de observação, adentrou a percepção de uma postura cênica que ainda está sendo descoberta pelos artistas, ainda está sendo maturada, e que se traduziu em uma leve timidez diante da nossa câmera.

Carlos dos Ventos também recita versos de estrutura popular e a poesia é exposta por meio de sua corporalidade e da empostação de voz que trazem o teatro popular de rua como uma referência. Assimilações que se evidenciaram, também, quando o grupo passou para a execução de “Asa Branca” (Luiz Gonzaga), momento em que a interação espontânea e imprevisível com o público passante aconteceu naturalmente. Pudemos, então, registrar a presença de um transeunte, conduzindo uma bicicleta, que se aproximou do trio demonstrando muito interesse pela atuação. Nesse instante, Carlos se volta para o espectador com o pífano produzindo uma direta troca de olhares. O apreciador, tendo interrompido o seu trajeto para curtir a apresentação, bate palmas acompanhando o ritmo de um clássico da música brasileira. Seu nome é João Severino dos Santos e, conversando conosco, revela que a apresentação o fez lembrar do Mestre Vitalino que também ficou conhecido pela banda de pífanos que liderou na região por muitos anos.

A presença do pífano em Caruaru e outras cidades do Agreste Central pernambucano é muito marcante e suas bandas tradicionais “estão espalhadas entre os centros urbanos e a área rural desses municípios, que se assemelham em clima e vegetação mais ao Sertão do que com a Zona da Mata e o Litoral” (COELHO [Org.], 2014, p.24). Na própria narrativa de Carlos dos Ventos podemos comprovar que os mestres desse instrumento continuam passando o seu saber aos jovens e estes dão novos sentidos e usos à sonoridade tão peculiar. Nosso entrevistado conta que, antes da formação do grupo que passou a se apresentar em lugares públicos, conheceu o pífano, ou pife, com Vitória do Pife, musicista e sua conterrânea.

A gente começou com aula e eu escutava histórias de que ela tocava no sinal. Fui conhecendo pessoas que trabalhavam na rua, também, que faziam malabares no sinal. Uma vez, eu estava em Arcoverde com um amigo que faz malabares e eu disse: ‘ei, véio, eu sei duas músicas aí, dá pra te acompanhar no sinal?’. Ele disse: ‘bora simbora’” (Carlos dos Ventos).

Dessa forma, Carlos dos Ventos narra como a descoberta do pífano e da relação entre música, poesia e outras artes se deu diretamente nas ruas e áreas de uso coletivo da cidade, acrescentando as ações artísticas que presenciou no Polo Cultural Estação Ferroviária de Caruaru. Enquanto iniciante na prática musical, Carlos percebeu vantagem nas apresentações nos sinais (ou semáforos) de trânsito para arrecadar contribuições: nos referidos pontos, o artista pode repetir as músicas que conhece sem os espectadores percebam que o repertório ainda é reduzido. Afinal, os veículos passam com seus condutores e passageiros que não percebem que o artista pode estar exercitando algumas poucas músicas enquanto ainda ganha experiência e técnica.

Então, eu aprendia uma música e ia pro sinal testar e comecei desse jeito. Depois veio a necessidade de começar a tocar nos rolês com o grupo Vai no Teu Tempo pra arrecadar o dinheiro pra sustentar o rolê, pra gente comer, pra gente pagar passagem, pra gente fazer a manutenção dos instrumentos e foi desse jeito” (Carlos dos Ventos).

Assim, Carlos expõe uma das motivações para a criação do grupo: busca de recursos para dar continuidade às apresentações nos espaços populares. Ao lado desse objetivo prático, encontra-se o desenvolvimento da noção coletiva e heterogênea das linguagens e das práticas culturais da região em diálogo com outras geografias urbanas de recepção e fomento das artes. Em um processo de vivência conceitual e empírica do repertório, o grupo procura, sempre que possível, exercer e defender uma postura cênica com objetos que acrescentam simbologias às narrativas que ganham vida, também, em saraus com uma dinâmica particular:

(…) a maioria dos saraus é aquela coisa repetitiva, uma pessoa apresenta um poema e recebe as palmas e vem outra pessoa. No Vai no Teu Tempo, a gente faz uma coisa diferente: a gente faz a poesia ininterrupta. Uma pessoa recita e, quando ela termina, já vem outra. Não tem tempo para palma e, aí, vem aquela coisa da emoção acumulada” (Carlos dos Ventos).

A partir deste movimento entre os participantes da proposta poética, o trio de artista pretende interagir com objetos que permitam uma brincadeira com a ideia dos elementos da natureza: fogo, ar, terra e água. Por exemplo, um candeeiro, um regador, o próprio pífano que simboliza o vento com o sopro, etc. Ao descrever esses jogos lúdicos, Carlos dos Ventos explica o horizonte estético e relacional que o grupo busca empreender:

A coisa da poesia vem antes da arte de rua e de se apresentar em alguns lugares. Mas, a proposta da gente é fazer isso: montar um número que quebra essa quarta parede e busca a interação com as pessoas, que traga as pessoas pra dentro da fantasia. É isso o que a gente quer, ter um pé na fantasia e um pé na realidade. Pra falar com as pessoas da realidade, trazer para nossa fantasia e todo mundo brincar” (Carlos dos Ventos).

A poesia como linguagem primeira e impulsionadora de contatos interpessoais também está no centro da narrativa de Maria Ferrera que iniciou o seu contato com a música a partir do Rap. Moradora do bairro Santa Rosa, em Caruaru, sempre acompanhou as batalhas de rimas nas ruas. Ao mesmo tempo, sempre se interessou por escrever poemas e tentar musicá-los. Com o tempo, as oportunidades de conhecer mais de perto a música popular tradicional da cidade foram aparecendo em espaços como a já citada Estação. Neste espaço de memória e atividades coletivas, Maria teve aula com o mestre Anderson do Pífe e, também, pegou em um pandeiro pela primeira vez. Compreendendo as possibilidades de aproximar a cultura popular com a levada do Hip-Hop, Maria vem, junto ao grupo Vai no Teu Tempo, abrindo cada vez mais espaço para a música dos mestres tradicionais em seu próprio trabalho.

Como artista em construção, Maria acredita no avanço para apresentações em outras localidades:

E meu intuito é me apresentar em outras cidades e acho que aqui [Caruaru] é mais como uma vitrine para poder saber como vai ser esse processo de se apresentar nas ruas e eu sei que, em vários lugares, a recepção vai ser diferente também porque, aqui, o pessoal é mais caloroso, dança quando a gente toca, mas eu tenho consciência de que em algum lugar pode ser que a recepção não seja essa e a gente tem que estar preparado para qualquer coisa que aconteça na rua” (Maria Ferrera).

Esta é a percepção da complexidade das ruas, praças, feiras, dos mercados e transportes coletivos como palcos que, ao mesmo tempo que são desafiadores, são carregados de uma liberdade interacional muito atraente aos artistas. Para Maria, as ruas são alvo de seu olhar aguçado, também, como fotógrafa em mais uma prática que a deixa muito à vontade nos Espaços Populares. Dessa forma, a importância do grupo Vai no Teu Tempo foi crescendo em termos de objetivos práticos a serem alcançados:

Acho que a tocada na rua veio muito da necessidade, também, de conseguir dinheiro para comprar instrumentos. Estou tentando aprender vários instrumentos diferentes e a rua foi a possibilidade de conseguir a grana e, também, para poder viajar e fazer poesia na rua porque eu acho que tem uma desvalorização da poesia em vários lugares, em Pernambuco, qualquer lugar que seja. E o jeito mais fácil de conseguir, mais fácil entre aspas, a grana é tocando na rua (…). Eu acho que a experiência da rua é como um laboratório. E, também, como eu sou fotógrafa, eu gosto muito de perceber como as pessoas funcionam ao longo do dia e isso vai servindo  de laboratório para mim também” (Maria Ferrera).

A analogia da rua com um laboratório – lugar de investigação, de testagem e de busca por soluções – é muito propícia à relação entre arte e vida como descrita por nossa entrevistada. Perspectiva que inclui a busca pela sobrevivência. Por isso, quando perguntamos a Maria se é possível sobreviver da música nas ruas, sua resposta é, ao mesmo tempo, realista e positiva: “Eu acho que dá. Assim, se você souber ser uma pessoa minimalista, digamos assim, de ter só o que você precisa, eu acho que daria sim. Você não exagerar nos quereres, eu acho que rola”.

Para Urbano Leafa, a expectativa de sobrevivência da arte nas ruas ainda está distante e os valores arrecadados se configuram como um complemento que ajuda nos gastos específicos para manutenção e ações do grupo. Sua aproximação com a música se deu, também, reconhecendo os enlaces com a poesia, somando a isso o convívio em ONGs de cultura e com amigos que partilham conhecimentos na área. Desde a formação do Vai no Teu Tempo, os espaços populares deixaram de ser uma circunstância acidental para se tornarem os territórios selecionados para sua poética. Uma experimentação que Urbano Leafa classifica da seguinte forma:

É muito desafiadora porque a gente vai tocar pra tentar trazer um pouco de alegria para a vida das pessoas, um pouco de acalanto, pela correria do dia a dia. E as pessoas, também, se sentem muito acolhidas para com isso. Chegam…muitas vezes não é nem a questão do dinheiro que se dá, a questão é o sorriso, um aplauso, uma dança, um olhar mais alegre. Isso é o que contempla a gente na música de rua” (Urbano Leafa).

Aqui é acrescentado mais um significado elaborado pelos próprios artistas e que ainda não havia sido mencionado. Os músicos/poetas/atores de rua, no grupo Vai no Teu Tempo, interpretam as ruas como laboratórios, como teatros sem “a quarta parede” e como o espaço fundamental de esgarçamento do olhar sobre o cotidiano e micro liberações de amarras relativas aos compromissos e problemáticas sociais variadas. O alcance artístico sendo definido pelo público de comportamento imprevisível e impulsionador de situações únicas. Nas palavras do próprio Urbano Leafa “a interação é a melhor possível, a gente é muito bem recebido onde toca. As pessoas chegam, param para olhar. Essas pessoas, talvez, estejam estressadas no seu dia a dia, mas param para olhar, param para escutar. Às vezes deixam uma moeda, às vezes deixam uma cédula, ou deixa até um sorriso, uma alegria, uma coisa compartilhada em si”.

Inseridos nesse contexto cultural entre mestres e parcerias jovens, podemos perceber que os três integrantes do grupo vivenciam a pluralidade de oportunidades da cidade e buscam reverberar ações independentes que ganham as paisagens mais movimentadas, sempre associando o hibridismo de linguagens com a espontaneidade das relações de aprendizado e de acesso aos referenciais locais e universais.

Vai no Teu Tempo é a aceitação dos processos, das descobertas e da reinvenção diária das práticas cotidianas, em consonância com os ritmos dos territórios urbanos.

Boas Leituras:

CARREIRA, André Luiz Antunes Netto. “Teatro popular no Brasil: a rua como âmbito da cultura popular”. Revista Urdimento, nº 4, 2002, p. 05 a 11;

COELHO, José Rafael (Org.). “Pífanos do Agreste”. Recife: Página 21, 2014.


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