Por Theia Produtores Associados em 12/jun/2020
Nas artes e vivências dos espaços populares, todos nós somos improvisadores. Podemos pensar dessa forma porque as nossas interações, apesar de serem baseadas nas expectativas de nossos hábitos, são inventadas, reformuladas e redescobertas diariamente. Este é um princípio que direciona, também, a nossa ação de pesquisa, exigindo um planejamento que otimize os deslocamentos da equipe com itinerário pré-estabelecido mas que, ao mesmo tempo, seja flexível e adaptável às surpresas impostas pelas circunstâncias. Indo direto ao ponto, alguns momentos de nosso trabalho podem ser descritos como uma verdadeira “caça ao artista” nos espaços coletivos. Esse foi o processo em que se deu a nossa busca pelos violeiros repentistas sobre os quais tivemos notícias durante os nossos registros de músicos/compositores/cantores que se apresentam nas ruas, praças e outros pontos da geografia urbana de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) em troca de contribuições espontâneas.
Influenciados pelo imaginário em torno da cantoria popular do Nordeste, percorremos feiras livres de alguns bairros da cidade pernambucana e não encontramos os cantadores. Nossa intuição havia falhado e outro cenário de trabalho, que estava sendo ocupado por tais artistas, deveria ser descoberto. Com esse objetivo, no dia 20 de outubro de 2019, a Ilha do Rodeadouro, no rio São Francisco, entrou na nossa rota de pesquisa. Ficamos sabendo, finalmente, que os violeiros aproveitavam a intensa movimentação de banhistas que visitavam a ilha turística. Quando realizamos esse encontro, a poesia popular adentrou nosso acervo documental e trouxe outra dimensão complexa do improviso: a criação rápida e rítmica de versos. Após o contexto dos jovens MCs que praticam o freestyle na Batalha da Pista da orla urbana de Juazeiro (conteúdo publicado em 17/01/2020), perseguimos e alcançamos a poética rimada e metrificada por experientes cantadores.
Tivemos a oportunidade de conhecer, então, os poetas populares Severino Silva, Zezinho Oliveira e Gabriel Cantador, respectivamente nascidos em São José de Egito (PE), Mauriti (CE) e na Cidade de Sousa (PB). Há décadas, os três se apresentam pelas praias, feiras e eventos no Sertão do São Francisco e narram histórias de suas inúmeras viagens em cantorias por todo o país.
Sempre em trânsito e buscando seu “ganha pão”, o violeiro repentista é um personagem social que, por meio de olhares históricos, tem o seu surgimento atrelado, muitas vezes, ao desenvolvimento populacional do Nordeste brasileiro principalmente nos séculos XVIII e XIX. A abertura de estradas e a fundação de vilarejos e povoados pelos sertões favoreceram rotas comerciais que ligavam o interior aos centros urbanos litorâneos. Entre o comércio, a agricultura e a pecuária, atravessamentos culturais formaram as bases sobre as quais se estabeleceram práticas poéticas e rítmicas que remetem à memória coletiva e à oralidade de origens ibérica, africana e nativa.
Com toda a carga tradicional dessa manifestação da poesia, a típica prática do poeta cantador permeia as histórias de vida dos nossos violeiros entrevistados. O primeiro deles, Severino Silva (72 anos), vindo do Sertão do Pajeú (PE), contou-nos que começou “a bater viola primeiro com Canarinho, Zé Canário, chamado Canarinho, de Serra Talhada. Mas, de quando em quando, me encontrando com Pinto. De quando em quando, Pinto do Monteiro vinha e me dava mais uma dica, né?”.
Na mistura entre vida e viola, Severino destaca o fato de que, em meio ao acesso que teve aos cantadores da sua região, iniciou seu trabalho com 14 anos de idade e, com 17 anos, começou a viajar para atender à sua arte/ofício. Severino carrega, como podemos perceber, referências culturais importantes para fortalecer seu nome como violeiro repentista. O Vale do Pajeú, onde se localizam São José do Egito, Itapetim e outros municípios que movimentam a poesia popular pernambucana, tornou-se uma região reconhecida nacionalmente como “berço” de renomados repentistas. Próximo da Serra do Teixeira e do Cariri Paraibano, onde nasceu Pinto do Monteiro, o Sertão do Pajeú teve seu nome propagado por famosos poetas e cantadores improvisadores, entre eles Rogaciano Leite, Louro do Pajeú, Dimas e Otacílio Batista e muitos outros (vale ressaltar que a lista de poetas que fazem a fama do Vale do Pajeú é enorme).
Dedilhando a viola enquanto conversa com a gente, Severino vai dando exemplos dos seus mestres e das cidades que conheceu, em todo o país, ao se apresentar nas mais diferentes situações. Dentre seus “palcos”, os espaços públicos não poderiam faltar porque é neles que os versos improvisados ganham a dinâmica das rápidas interações com os passantes. Para Severino, estar nas ruas é uma prática que se traduz na sua possibilidade de ser artista e de mostrar seu conhecimento: “Depois que eu amadureci em cantoria e no som da viola, aí eu cheguei ao ponto de cantar para o povo nas ruas. Canto nas praças, nas orlas, canto nas praias. Canto em vários lugares nesse mundão e, graças a Deus, tenho me dado muito bem com o povo que admira a cultura popular e, assim, eu vivo juntamente com eles”. Na sua fala, podemos frisar uma noção de preparação e desenvolvimento artístico estimulada pelo público das ruas, conhecedor da cultura popular, que se torna exigente diante do artista para, depois, poder retribuir com valores dados espontaneamente. Da mesma forma, a citada maturidade do cantador o leva, também, a enfrentar os desafios de cantoria com outros violeiros, onde a “disputa” se dá no domínio de métricas como Sextilha, Septilha, Décima, Martelo Agalopado, Galope à Beira-Mar, etc. A partir dessa compreensão do trabalho, Severino Silva admite que é conhecido e bem recebido pelas pessoas na região e que pôde divulgar melhor seu trabalho depois de gravar CDs e DVDs.
Somam-se, portanto, a experiência no repente com algumas práticas de aproximação com o público e formas de vender o próprio trabalho. Tudo isso funciona, principalmente, com a escolha correta do local aberto onde o artista se apresenta. Um ponto turístico, como especificado pelo cantador, pode ser um ambiente muito bom para ter o retorno financeiro tão necessário, por mais que continue a ser incerto. Afirmando sua subsistência como cantador, Severino nos conta que “quando a gente vai fazer uns baião de viola desses, vamos dizer, por aqui no Rodeadouro, nas orlas, a gente tem aquelas gratificações daquela turma que admira a cultura da gente. A gente ganha duzentos, trezentos, cem, quinhentos Reais, dependendo da quantidade de pessoas admiradoras do nosso trabalho, entendeu? Mas, graças a Deus, eu vivo bem na profissão de viola”.
Quando pensamos na especificidade da Ilha do Rodeadouro, precisamos considerar as interações dos artistas com os banhistas que buscam lazer e contato com a natureza de forma individual ou com famílias e amigos. Falamos da prática de turismo aliada ao consumo da culinária regional em restaurantes com estrutura de palhoça e mesas espalhadas pela areia. Ou seja, os frequentadores não estão vivendo a pressa do cotidiano e a objetividade de suas ações. Em meio ao distanciamento dos compromissos rotineiros, a arte popular chega para fazer do diálogo e do contato interpessoal a sua matéria poética; muitas vezes, com o desenvolvimento de temas que fazem parte da vida e da memória das pessoas.
Este é, também, um lugar de inspiração para Zezinho Oliveira, nosso segundo entrevistado. Em sua fala, o autorreconhecimento como cantador faz parte de sua história de vida: “Meu nome é José Furtado de Oliveira, mas sou conhecido como Zezinho Oliveira em todo território brasileiro, viu? Nasci e me criei no município de Mauriti no Estado do Ceará, no ano de 1945, no dia 07 de Junho. (…). Com quinze anos de idade, comecei a cantar; ouvindo os poetas cantando e eu prestando atenção. Ninguém me ensinou, só Jesus que me ensinou esse dom. (…). Aí, eu continuei na minha carreira. Depois do Ceará, eu vim pra aqui no ano de 2000. Cheguei aqui já com a viola, comecei a cantar. Eu canto na orla de Juazeiro, Petrolina, nos clubes, pé de parede. Em toda cidade, aqui, eu canto e o pessoal me conhece. Em todo canto que eu chego, o povo me abraça e me paga bem. Em todo canto, nas mesas, que eu chego, o povo bate palma pra mim porque eu sou um repentista da viola e eu canto a cultura brasileira, né?”.
Assim como Severino, Zezinho Oliveira começou muito jovem na viola. Contudo, seu entendimento sobre a própria formação é um pouco diferente do seu colega. Para Zezinho Oliveira, a sua prática poética lhe foi dada como um dom (divino ou natural) e seu aprendizado veio da observação diante dos antigos cantadores mais experientes, dando evidente destaque para a escuta atenta em seu processo autodidata. A autocompreensão como repentista está associada à demonstração de autoconfiança com a qual, em sua concepção, o poeta já nasce. Esta autoconfiança se reflete, por exemplo, na forma como descreve seu contato com o público dos espaços populares: “A experiência é que eu chego nas mesas elogiando o pessoal. Eu chego de mesa em mesa elogiando e o povo me dá dinheiro, me dá de cinco, me dá de dez, me dá de dois, me dá de um Real, me dá de vinte Reais e me dá de cinquenta Reais. Tem mesa que eu já ganhei de cem [Reais] e é assim. Tem noite que a gente ganha mais, tem noite que a gente ganha menos, mas a cultura é assim: ela enverga, mas não quebra”.
A descrição, em tom positivo, sobre a profissionalização e o retorno financeiro se junta à explicação sobre a escolha do lugar onde se apresentar: “Onde a gente chega e que acha o apoio, a gente tá cantando. Onde a gente chega e não acha, a gente também não canta. A gente chega numa mesa e se o povo não gostar, a gente, também, sai pra outra. Agora, quando a gente chega na mesa em que abraçam a gente, a gente fica com aquela alegria, canta pra todo mundo. Todo mundo fica sorrindo pra gente, pagam muito bem à gente”.
Toda a narrativa vai revelando os espaços populares como ambientes, ao mesmo tempo, de reconhecimento e de formação do violeiro repentista. Para Gabriel Cantador, a viola foi a possibilidade de deixar o trabalho como agricultor e procurar viver exclusivamente como poeta. Nascido na Cidade de Souza, na Paraíba, Gabriel Cantador vive há mais de quarenta anos em Juazeiro (BA). Conta-nos que, nesta região do São Francisco, conseguiu inserção em programas de rádio e televisão para projetar seu nome e seu trabalho. Quando perguntado sobre o início de sua trajetória, nosso terceiro entrevistado, de forma muito semelhante a Zezinho Oliveira, atribui sua poesia a um tipo de talento com o qual nasceu e descobriu ainda criança: “Meu envolvimento na cantoria é porque toda vida…eu nasci poeta, né? Já cantava, assim mesmo, sem viola, já ganhava dinheiro sem viola. Quando eu ia chegar na feira, o pessoal dizia ‘olha o poeta de Chico Gabriel’, meu pai se chamava Chico Gabriel, ‘olha o poeta, manda ele cantar’. O pessoal achava graça, ria. Agora, nem viola eu tinha nesse tempo. Pegava qualquer pedaço de pau e tocava igualmente uma viola. Meu destino era tocar viola. Depois, eu peguei [sic] trabalhar com 16 anos de idade e meu irmão me deu uma viola (…). Depois que peguei essa viola, nunca mais me viu na roça. Peguei a viola que ele me deu e comecei a cantar com ela naquelas fazendolas, onde a gente convivia com aquele pessoal. (…). Faziam cantoria e me chamavam, as rádios me chamavam também porque já estavam me apresentando àquele público. Estava agradando aos poetas também. (…). E, hoje, estou aqui; já gravei vários CDs, gravei, também, DVD. E me apresentei em vários festivais de viola e sempre estou vendendo meus CDs onde eu posso. Cantando muito aqui no Rodeadouro e na orla que é onde tem gente de fora que abraça e gosta de poesia”.
De forma geral, para os três violeiros, a essência da arte nas ruas foi sendo agregada às gravações de CDs e/ou DVDs como produtos que podem ser vendidos – proporcionando um tipo de renda que vai além das contribuições espontâneas – ou apresentados como “cartão de visita” em espaços do mercado musical, como as rádios e programas de televisão. Podemos considerar que, há décadas, os poetas violeiros vivenciam distintos circuitos da arte e da cultura, entrando e saindo das sistemáticas institucionais públicas ou privadas. As ruas, praças, mercados, feiras, transportes coletivos e pontos turísticos continuam a ser os cenários fundamentais para esses artistas itinerantes; contudo, essa circulação reestabelecida todos os dias não deve ser romantizada, ou floreada, pelas idealizações tradicionalistas acerca desses poetas. Como enfatiza Gabriel Cantador, as ruas carregam a incerteza financeira e a constante busca pelo respeito à produção artística: “Cantar na rua é um problema. A gente canta na rua porque ama a profissão. Mesmo que não tivesse [sic] na rua, a gente cantava em casa mesmo quando chega a vontade de cantar. Porque o poeta nasceu dotado pela natureza. Agora, quem não é poeta aprende com os outros e diz que é poeta, às vezes. (…). Eu fiz o poema ‘O desabafo dos poetas’, né? Ele [antigo parceiro de trabalho] vinha comigo e cantava nas mesas, aí cantava mais eu [sic] e cantava sozinho meus versos. Ainda hoje, eu digo ‘O desabafo dos poetas’ é meu. (…). E continuo assim com a viola, cantando por aqui. Um dia ganha duzentos, outro dia cento e cinquenta, outro dia ganha sessenta, mas é o cada qual com seu cada qual, isso é o meu destino e a minha arte, minha profissão e eu abraço com amor. Graças a Deus, até hoje, tou [sic] batalhando”.
Entre narrativas de vida que se assemelham e se diferenciam em detalhes e percursos, nossos três entrevistados evidenciam em seus trabalhos uma prática poética e ritmada que tem sua origem e essência nos espaços populares. O imaginário criado e difundido sobre os violeiros repentistas está ligado às feiras de pequenas ou grandes cidades, às antigas estações de trem, às praças de grandes metrópoles brasileiras, etc. Ligados, também, ao turismo no rio São Francisco, Severino Silva, Zezinho Oliveira e Gabriel Cantador dominam a experiência da poesia popular nos espaços públicos. Divulgam a poesia metrificada e improvisada que é, em si, a matéria de que é feita a interação social em torno da arte dos cantadores. Estes últimos procuram nas próprias trajetórias de vida e nos comportamentos dos ouvintes os temas para os versos que revelam as estratégias que cativam os colaboradores: senso de humor, elogios irônicos, simpática competitividade com os colegas cantadores e o incentivo engraçado – quase indutor – para que as pessoas paguem pela apresentação. Assim, a viola e a poesia, com toda a bagagem da tradição, ganham o dinamismo que se improvisa e se inventa, há muitos anos, no cotidiano da Ilha do Rodeadouro e de outras paisagens entre Juazeiro e Petrolina.
Boas Leituras
COSTA, Marcos Roberto Nunes; PASSOS, Saulo Estêvão da Silva. “Itapetim: Ventre Imortal da Poesia – antologia de poetas, repentistas e compositores itapetinenses”. 2ª ed. ampliada, Recife, CEPE, 2013.
NUNES, Joselito. “Pinto velho do Monteiro – um cantador sem parelha”. 3ª ed. Recife, 2009.
NUNES, Zelito. “No Sertão onde eu vivia”. 2ª ed. Recife: Ed. do autor, 2014.
SAUTCHUK, João Miguel. “A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino”. Brasília, Tese, Pós-Graduação em Antropologia, UNB, 2009.
TAVARES, Bráulio. “Contando histórias em versos: Poesia e Romanceiro Popular no Brasil”. São Paulo: Ed. 34, 2005.
TEJO, Orlando. “Zé Limeira – Poeta do absurdo”. 10ª ed., João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000.